A carreira jurídica é a mais importante do
serviço público. Acima do médico, do professor ou do engenheiro está o
advogado. Ele recebe os maiores salários e tem mais vantagens e privilégios do
que os demais. O advogado em geral, o juiz em destaque.
A sociedade admite que julgar é a mais espinhosa das funções. Os
magistrados precisam ter conhecimento, equilíbrio, ponderação, estado de
espírito e suporte para decidir bem os litígios entre as partes que chegam às
barras dos tribunais. Repositório da esperança e da crença social, a justiça,
mesmo que tarde, não pode falhar. Se falhar, arrasta consigo o edifício mais
nobre da construção humana: a democracia.
Mas e quando a justiça se transforma ela própria na autora das
iniquidades? O que pode acontecer quando, ao invés de exercer a tutela arbitral
e consolidar a imparcialidade estatal, passa a agir como se fora parte
interessada?
Num estudo clássico de ciência política, Franz Neumann exibiu as
marcas da parcialidade da justiça como uma das explicações mais consistentes
para o surgimento, a ascensão e o triunfo do nazismo na Alemanha.
O livro que
dedicou aos julgados de Weimar, Behemoth, só pôde ser
publicado nos Estados Unidos.
Foi lá que Neumann se refugiou, em 1936, para não se tornar mais
uma dos milhões de vítimas de Adolf Hitler. A verdade foi limada do III Reich,
o império dos mil anos, que, felizmente, só durou 12 anos (só?).
Esse monumental trabalho nunca foi publicado em português. A época
é oportuna para traduzi-lo. Pode vir a servir de inspiração e advertência para
os rumos que a justiça vai tomando no Brasil.
Ao lado de exemplos dignificantes de uns tantos magistrados
comprometidos com a causa e que se mostram à altura do tratamento especial dado
no serviço público à carreira jurídica, pode-se perceber uma tendenciosidade
sistemática do poder judiciário em algumas partes do país ou quando chamado a
decidir determinadas questões estruturais.
A Amazônia é uma das regiões mais mal servidas pela justiça
brasileira. Por amarga ironia, é também onde o poder judiciário altivo é mais
necessário.
Diante de tantos conflitos, de tanto primitivismo e de uma
violência de profundidade abissal, magistrados bem preparados, corajosos, independentes
e honrados podem servir como a vanguarda civilizatória ou o anteparo à borrasca
de selvageria que campeia nessa que é a maior fronteira nacional.
O contraste entre estruturas ultramodernas que são montadas em
espaços bem delimitados do território amazônico para a extração, transporte e
comercialização de suas riquezas naturais, e o universo de barbárie e
primitivismo que se cria em torno desses "grandes projetos", é de
assustar.
No entorno desses empreendimentos de bilhões de reais se sucedem problemas
como trabalho escravo (mas escravo mesmo), destruição massiva e maciça da
natureza, choques entre brancos e índios, apropriação ilícita de enormes
extensões de terras (do tamanho de países), crimes de pistolagem e uma extensa
agenda de anomalias.
Seu simples enunciado sugere que a Amazônia ainda vive uma era
anterior às conquistas republicanas da revolução francesa. Ou seja: em 2012, a
Amazônia não chegou a 1789.
Ainda assim, esse complexo painel de acontecimentos jamais será
entendido através de esquemas explicativos simplistas, do bem e do mal, do
bandido e do mocinho, do pobre e do rico. A convivência de um plano
contemporâneo da história com uma dimensão arcaica é às vezes pacífica; em
outros casos, tem intensidade conflituosa de autêntica guerra, com muitos danos
e vítimas.
A má justiça, além de não servir de freio a esses abusos, funciona
como fator de estímulo ao darwinismo social que resulta de uma lei de
abrangência crescente: a lei do mais forte. O mais forte, que pratica as mais
diversas formas de violência, aspira ao poder arbitrário, que se sustenta pela
imposição de outra lei de vigência em expansão: a lei do silêncio.
Aqueles que buscam a verdade e tentam torná-la pública, tanto no
universo diretamente interessado por esses acontecimentos como para auditórios
mais amplos, no país e no exterior, estão sendo punidos por sentenças que
ameaçam, dentre outras garantias constitucionais, a liberdade de informação, o
direito de imprensa.
São cada vez mais frequentes as penas que a justiça aplica a
jornalistas que se empenham em ser uma boa fonte de informações e de
conhecimento sobre o drama amazônico, de interesse mundial.
Peço vênia ao distinto leitor para citar meu próprio caso.
Jornalista profissional há 46 anos, acompanhei o regime militar desde 1966,
quando se intensificou a escalada de repressão que iria levar ao AI-5 e seus
desdobramentos nefandos dos anos de chumbo.
Nesse período fui processado uma única vez, pela temida Lei de
Segurança Nacional — e fui absolvido pela Auditoria Militar de Belém. A partir
de 1992, sete anos depois de restabelecida a normalidade democrática, que já é
a mais duradoura da história republicana, fui processado 33 vezes e condenado
em quatro processos. Em todos eles demonstrei que o conteúdo das minhas
matérias jornalísticas era verdadeiro e tinha relevante interesse público. Mas
não escapei das condenações.
Nenhuma das pessoas que me processaram exerceu o direito de defesa.
Nenhuma delas contestou de público o que publiquei. Todos os 12 autores de
ações estavam ligados a grupos de comunicação, grileiros de terras, extratores
de madeira e magistrados a eles relacionados. O elo entre esses personagens dá
aos seus propósitos as características de uma conspiração. Conspiração contra a
verdade e pela imposição do silêncio que interessa a uma parte apenas do
enredo: os poderosos.
Escrevo este artigo porque uma nova decisão da justiça do Pará foi
dada contra mim, como se eu não tivesse argumentado exaustivamente através do
recurso judicial agora negado. Como se estivesse em vigor outra lei, que só os
poderosos podem usar: eu quero, eu faço, eu posso; os prejudicados que se
lixem.
Através deste artigo, me lixo perante o destinatário da verdade: o
cidadão brasileiro. É ele que paga a conta elevada da justiça. É quem pode exigir
que ela seja elevada na contraprestação do serviço, que é ruim.
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