A imagem que muitas vezes nutrimos de um Paulo robusto, inabalável e
totalmente destituído de conflitos emocionais cai por terra diante da sua
Segunda Carta aos Coríntios. Em nenhuma das suas treze cartas as fraquezas do
grande apóstolo são tão evidenciadas (e confessadas) quanto nessa. E ele
sintetiza muito bem isso ao dizer que suas atribulações se traduziam em “lutas
por fora” e “temores por dentro” (2Co 7.5).
No início da carta o apóstolo nos dá
pistas de alguns dos graves perigos aos quais ele havia sido submetido – as
“lutas por fora”. Somos informados que, na sua viagem de volta para a Ásia,
Paulo e seus companheiros foram tomados por uma tribulação sobre-humana e
desesperadora.
“Porque não queremos, irmãos, que
ignoreis a natureza da tribulação que nos sobreveio na Ásia, porquanto foi acima
das nossas forças, a ponto de desesperarmos da própria vida” (2Co 1.8 – itálico
meu).
A idéia no original grego para “acima
das nossas forças” é a de alguém que está sendo pressionado acima da medida;
além de sua capacidade. Comentando essa passagem, Calvino observa que “esta
metáfora é tomada de uma pessoa que sucumbe sob a pressão de um fardo pesado ou
de navios que afundam em razão de sua sobrecarga”[1] – uma metáfora bastante
apropriada, diga-se de passagem, tendo em vista que Corinto era uma cidade
portuária. Não sabemos ao certo a qual(is) evento(s) específico(s)
Paulo está se referindo, mas é bastante provável que ele esteja aludindo à sua
estadia em Éfeso, que foi bastante conturbada (At 19.23ss), apesar de Lucas não
nos deixar essa impressão. No entanto, em passagens paralelas, Paulo nos
informa, por exemplo, que lutou com “feras” em Éfeso[2] (1Co 15.32) e que
“muitos adversários” se insurgiram para lhe fechar a “porta grande e oportuna”
que Deus lhe havia aberto para a evangelização (1Co 16.9). Há fortes indícios
de que esses “adversários” aos quais Paulo se refere tenham sido seus patrícios
judeus. Relembrando aos presbíteros de Éfeso como havia sido a sua conduta e
estadia naquela cidade, Paulo lhes lembra das provações que, “pelas ciladas dos
judeus”, lhes sobrevieram (At 20.19). É provável que os judeus tenham sido os
algozes de algumas das possíveis prisões que Paulo enfrentou durante seu
trabalho em Éfeso, uma vez que ele inclui na sua lista de aflições as “muitas
prisões” que havia enfrentado no seu ministério até àquele momento (2Co 11.23)
[3]. Mas não foram somente essas as “lutas por fora” que o apóstolo aos gentios
enfrentou. Respondendo àqueles que questionavam sua autoridade apostólica,
Paulo apresenta-lhes suas credenciais, incluindo entre elas seus sofrimentos
por amor ao evangelho:
“[...] em trabalhos muito
mais; muito mais e prisões; em açoites, sem medida; em perigos de morte, muitas
vezes. Cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites menos um; fui
três vezes fustigado com varas; uma vez, apedrejado; em naufrágio, três vezes;
uma noite e um dia passei na voragem do mar; em jornadas, muitas vezes; em
perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos entre patrícios, em
perigos entre gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos
no mar, em perigo entre falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias
muitas vezes; em fome e sede, em jejuns, muitas vezes; em frio e nudez” (2Co
11.23-27).
A
tudo isso Paulo denomina de “coisas exteriores” (2Co 11.28). Paulo é tão
enfático nessa questão que ele mesmo encarou todas aquelas tribulações como uma
verdadeira “sentença de morte”, e brinda seu livramento delas como se fosse a
sua própria ressurreição dentre os mortos, operada pelo Deus ressuscitador (2Co
1.9, 10). Calvino observa que, quando Paulo afirma que havia se desesperado da
própria vida, ele “não está levando em conta o auxílio divino, e sim está nos
dizendo que avaliava suas próprias condições, e não há dúvida de que toda força
humana vacila ante o temor da morte”[4]. Paulo reconheceu a sua total
incapacidade para superar toda aquela situação, e nada lhe restou senão a
certeza de iria sucumbir se Deus não lhe estendesse a mão. Ele chega à
conclusão de que o propósito de tudo isso era para que ele não confiasse em si
mesmo, e sim, em Deus (2Co 2.9), porque é na nossa fraqueza que o poder de
Cristo é aperfeiçoado (cf. 2Co 12.9).
Essas “lutas por fora” eram acompanhadas de violentos “temores [phobias] por dentro”, que consumiam o sossego do apóstolo. Tudo indica que na sua viagem de volta para a província da Ásia, Paulo foi tomado de uma profunda depressão, e era exatamente a igreja corintiana que estava no cerne dela. A relação do apóstolo com essa igreja sempre foi muito difícil, porque ela era uma igreja muito problemática. Paulo havia enviado uma carta, “no meio de muitos sofrimentos e angústias de coração..., com muitas lágrimas” (2Co 2.4), por meio de Tito, seu colaborador. Essa carta está situada entre 1 e 2 Coríntios, e não foi preservada (não a temos). O objetivo de Paulo com essa carta “severa”, como muitos a chamam, era simplesmente para que os coríntios “conhecêsseis o amor que vos consagro em grande medida” (2 Co 2.4). Paulo esperava ansiosamente o relatório de Tito para saber que efeito a carta havia produzido sobre os coríntios, mas parece que Tito havia perdido o último barco rumo à Macedônia, sendo forçado a viajar por terra, desencontrando-se do apóstolo (cf. 2Co 2.12-13 e At 20.1-2). Isso serviu para aumentar ainda mais a apreensão de Paulo. “As coisas em Corinto iam tão mal, que Paulo estava ansioso com seus resultados, mais do que costumeiramente”[5]. O apóstolo mesmo nos diz que sua ansiedade era tanta que ele sequer conseguiu aproveitar a “porta” que o Senhor lhe tinha aberto para pregar o evangelho em Trôade (“não tive, contudo, tranqüilidade no meu espírito, porque não encontrei o meu irmão Tito”- 2Co 2.12, 13). Paulo nos fala que essa ansiedade foi causada pela sua extrema “preocupação com todas as igrejas”, que diariamente pesava sobre ele, “além das coisas exteriores” (2Co 11.28). Contudo, nada estava perdido. Da mesma forma como o “Deus que ressuscita os mortos” livrou o apóstolo das “sentenças de morte” (2Co 1.9 – as “lutas por fora”), esse mesmo Deus estava prestes a aliviar os “temores por dentro” do apóstolo que Ele mesmo comissionara, enviando-lhes Tito. A chegada de Tito foi tão confortadora para Paulo que ele chega a dizer que isso foi mais uma intervenção do “Deus que conforta os abatidos” (2Co 7.6). As notícias trazidas por Tito de Corinto reanimaram o apóstolo e fez com que ele recobrasse o seu ânimo ministerial. A mensagem contida na “carta severa” tinha surtido efeito na igreja corintiana. Paulo alegrou-se porque a carta havia entristecido os coríntios, mas não com uma “tristeza segundo o mundo”, que “produz morte”, e sim, com uma “tristeza segundo Deus”, que “produz arrependimento para a salvação” (2Co 7.10). A igreja de Corinto (ou pelo menos boa parte dela) havia, finalmente, aceitado a Paulo como um verdadeiro apóstolo de Cristo, ao contrário de muitos outros “falsos apóstolos” que se insurgiram contra ele e que estavam persuadindo a igreja corintiana a seguir suas práticas (2Co 11). Tito relatou a Paulo do “pranto”, da “saudade” e do “zelo” que os coríntios ainda nutriam por Paulo (2Co 7.7), e isso foi o suficiente para que grande parte dos “temores” do apóstolo se dissipasse.
O exemplo de Paulo é encorajador para o povo de Deus de todas as épocas. O mesmo Deus que assistiu o apóstolo nas suas fraquezas ainda é o mesmo, “ontem, hoje e eternamente” (cf. Hb 13.8). Infelizmente, às vezes encaramos os relatos bíblicos como abismos intransponíveis, com mais de dois mil anos de diâmetro, como se Deus não mais socorresse aqueles que Lhe pertencem. “Temores por fora e lutas por dentro” é a causa do desânimo de muitos pastores hoje em dia, desembocando por vezes até em desistência do ministério. Isso é agravado ainda mais quando os “oportunistas da fé”, muitos dos quais se autodenominam “apóstolos” e “profetas” hoje em dia, angariam sucesso, glória pessoal e prosperidade à custa de suas ovelhas, fazendo com que os números dos templos cheios (mesmo que para isso os bolsos das ovelhas se esvaziem) apontem o fracasso daqueles que teimam em permanecer fieis à Palavra e resistentes à sedução das estratégias de marketing como meio de alavancar seus ministérios. Para Paulo, tais pessoas não passam de “falsos apóstolos, obreiros fraudulentos”, que se transformam em ministros de Cristo, mas que não passam de verdadeiros emissários de Satanás (2Co 11.13-15). Urge que pastores íntegros e dedicados à Palavra levantem suas vozes do púlpito contra essas coisas, protegendo suas ovelhas dos lobos, ainda que para isso eles tenham que se utilizar de “palavras severas”. Certamente, isso trará consigo “lutas por fora e temores por dentro”. Entretanto, é preciso crer que a graça de Cristo triunfará sobre a dor que os “espinhos” da vida (e do ministério) causam aos servos bons e fieis (2Co 12.7-10).
Soli Deo Gloria!
_______________________________________
[1]
Calvino, João. 2 Coríntios.
Editora Fiel, 2008. Pág. 33.
[2] Não devemos entender “feras” no seu sentido literal, uma vez que a expressão que a antecede, “como homem”, significa “falar figuradamente”.
[3] Para mais detalhes, ver Bruce, F. F. Paulo, o apóstolo da graça – sua vida, cartas e teologia. Shedd Publicações, 2003. Pág. 289.
[4] Op. cit. Pág. 34.
[5] Calvino, João. Op. cit. Pág. 72.
Autor: Leonardo Galdino
Fonte: [ Optica Reformata ]
[2] Não devemos entender “feras” no seu sentido literal, uma vez que a expressão que a antecede, “como homem”, significa “falar figuradamente”.
[3] Para mais detalhes, ver Bruce, F. F. Paulo, o apóstolo da graça – sua vida, cartas e teologia. Shedd Publicações, 2003. Pág. 289.
[4] Op. cit. Pág. 34.
[5] Calvino, João. Op. cit. Pág. 72.
Autor: Leonardo Galdino
Fonte: [ Optica Reformata ]
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