por Nelson Jobim, de Londres
Muito antes de ficar
famoso pelas Bachianas Brasileiras e outras obras-primas da música erudita,
Heitor Villa-Lobos já era um menino prodígio, violoncelista profissional aos 12
anos de idade. Mas seria impossível dizer quanto desse talento precoce já tinha
nascido com ele. Desde cedo, o genial compositor foi educado pelo pai, músico
amador dos mais apaixonados – e professor ultra-rigoroso. Parte de seu método
consistia em obrigar o filho a identificar quais notas musicais eram emitidas
em qualquer som ambiente, do pio de um passarinho ao freio de um trem. E, toda
vez que errava – crock! –, o pobre Heitor entrava no cascudo.
Agora a Ciência está
descobrindo, tal como no caso do maestro brasileiro, que o ouvido absoluto não
é um dom divino, mas algo que pode ser adquirido por meio de treinamento,
desde que feito na infância. Até há pouco, acreditava-se que ele era um
privilégio inato e raríssimo, prerrogativa de uma em cada 10 000 pessoas. Essa
visão começa a ser derrubada. Há pesquisadores que acham até que todos
nascemos com esse potencial.
A educação do ouvido
começa cedo
É fácil para um
professor de música reconhecer os alunos que têm ouvido absoluto.
Essa tribo superdotada costuma sofrer da compulsão de identificar musicalmente
qualquer ruído. Há até uma anedota a respeito do compositor austríaco
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) quando jovem. Uma vez ele teria exclamado
“Sol sustenido!” ao ouvir o guincho de um porco.
Mozart, a mais célebre
criança prodígio na história da música, tinha em comum com Villa-Lobos um
pai ambicioso e exigente, que o obrigava a estudar noite e dia. A questão
é saber se ele desenvolveu seu talento extraordinário porque começou cedo
ou se começou cedo porque tinha um dom natural.
Nos Estados Unidos,
uma pesquisa apresentada em novembro à Sociedade Acústica Americana conclui que
todos nós temos, pelo menos em potencial, um ouvido absoluto. Sua autora, a
psicóloga Diana Deutsch, da Universidade da Califórnia, partiu de uma analogia
com as línguas tonais – as diversas línguas, na maioria asiáticas e africanas,
em que uma mesma palavra pode ter diferentes significados apenas variando a
entonação.
Deutsch fez um grupo
de vietnamitas e chineses repetir os mesmos vocábulos em dias diferentes,
analisando os resultados em computador. As diferenças não ultrapassavam um
semitom. Tão pouca alteração sugere que os falantes de línguas tonais teriam,
todos, ouvido absoluto, pois dependem disso para se entender. “Não quer dizer
que sejam capazes de identificar notas musicais. Afinal, não foram treinados
para isso”, explicou a pesquisadora à SUPER. “Mas, como aprenderam uma língua
tonal na infância, desenvolveram o dom. Se eles puderam, todos podemos, desde
que a educação musical não seja tardia”, garante.
De pai para filho
É claro que a
disposição genética também conta. O geneticista Peter Gregersen, da
Universidade de Nova York, pesquisou 600 indivíduos com ouvido absoluto e
descobriu que “25% dos seus filhos também têm essa capacidade, em comparação
com 1% dos filhos de músicos sem ouvido absoluto”.
Mesmo assim, Diana
Deutsch e Daniel Levitin, psicólogo da Universidade McGill, no Canadá, acham
que todos podemos ser educados até desenvolver o dom, independentemente da
nossa herança genética. “Cerca de 95% dos filhos de falantes de persa
também falam persa”, disse Levitin à SUPER. “Isso não é um fenômeno
genético, mas um fato cultural e lingüístico. Tanto que, se você aprender uma
língua depois de uma certa idade, sempre terá sotaque e dificuldade de
raciocinar nela.” A diferença está, segundo Levitin, em aprender entre 3 e 6
anos. No máximo até os 9 anos.
Na música, dizem
os pesquisadores, aconteceria a mesma coisa. Quando uma criança ouve a mãe
dizer: “Isto é vermelho, aquilo é marrom”, aprende a identificar a
cor com a palavra. Se ouvir um instrumento de som nítido, como piano ou
xilofone, e lhe disserem “isto é um dó”, fará a mesma ligação. “O
aprendizado transforma essa associação num reflexo condicionado”, diz Levitin
(veja na página 58).
Combinar genética com
educação é a receita de sucesso. Quem nunca teve um músico na família,
certo, tem menos chance. Mas basta os seus pais cantarem afinado no banheiro
para você poder investir no treinamento do seu filho como um novo Villa-Lobos –
talvez até melhor, sem cascudo. O essencial é educá-lo na infância.
“Não acredito que o dom seja 100% natural nem algo que qualquer um possa
aprender”, diz o neurologista alemão Gottfried Schlaug, hoje na Universidade
Harvard, nos Estados Unidos. “Afinal, muitos já tentaram, sem sucesso. Mas
ninguém desenvolve ouvido absoluto sem estar exposto à música desde cedo.”
Resta um detalhe. O
dom não garante criatividade na composição nem genialidade na interpretação.
Helen Tucker, professora de música para crianças em Londres, faz questão
de ressaltar à SUPER: “Um músico com ouvido absoluto pode tocar como um robô.
Perfeição técnica não significa expressividade.”
Cérebro de músico
é bem especial
Lobo temporal é o
nome da região do córtex cerebral onde são processados os sinais sonoros.
“Deduzo que a habilidade de produzir música também deve estar lá”,
afirma o neurologista alemão Helmut Steinmetz, um dos pesquisadores da
Universidade Henrich Heine, de Düsseldorf, Alemanha, responsáveis pela
descoberta de que os músicos têm o lobo temporal esquerdo maior que o dos
outros indivíduos.
Steinmetz e seu
parceiro Gottfried Schlaug compararam, em exames de ressonância magnética, o cérebro de
trinta músicos – onze com ouvido absoluto e dezenove sem – com os de outros
trinta indivíduos. Em todos, o lobo temporal esquerdo é um pouco maior que
o direito, mas essa diferença chega a ser duas vezes maior entre os músicos e
maior ainda entre os portadores de ouvido absoluto.
Para o neurologista
Robert Zatorre, do Instituto Neurológico de Montreal, no Canadá, essa
constatação torna-se ainda mais surpreendente se considerarmos que o lado
esquerdo do cérebro é associado a funções verbais e analíticas e
o lado direito à intuição e às artes. Se os músicos têm o lobo temporal
esquerdo maior, isso significa que esse hemisfério cerebral também recebe
informações musicais – e não apenas o direito. O que indica, claramente, que a música,
além de arte, também é linguagem. “Cada um desses hemisférios deve
processar diferentes elementos musicais”, conclui Zatorre.
Na experiência
realizada por Steinmetz e Schlaug na Alemanha, o mais extraordinário foi a
conclusão de que o cérebro pode aumentar de tamanho com treinamento.
Schlaug disse à SUPER que “um lobo temporal esquerdo maior do que o direito
é a condição necessária para a formação de um ouvido absoluto”. Parece
espantoso, mas não é. Segundo Daniel Levitin, as imagens do desenvolvimento do cérebro feitas
pela neurologista Helen Neville, em 1994, na Universidade de Oregon, “revelam
um enorme crescimento das conexões neurais até os 9 anos de idade e o
final desse processo aos 18 anos”. Isso explica tanto a facilidade das crianças
de aprender línguas ou de adquirir ouvido absoluto quanto de até aumentar
o tamanho do cérebro. Assim, ter percepção genial fica mais fácil.
Para saber mais
Voz Cantada, Henrique Olival
Costa e Marta de Andrada Silva, Editora Lovise, São Paulo, 1998.
Na Internet
www.provide.net/~bfield/abs_pitch.html
Algo
mais
O ouvido humano só
é capaz de perceber sons nas freqüências entre 20 e 20 000 hertz, ou
ciclos por segundo. Quanto mais alto esse número, mais agudo é o som.
Galeria
extraordinária
Conheça
alguns donos de ouvido absoluto que se destacam entre os artistas.
"Um regente que
tem ouvido absoluto consegue afinar o grupo sem o diapasão. Ele evita que
durante a música as pessoas baixem o tom, tendência natural num
coral. Villa-Lobos e Bartók compunham sem chegar perto do piano, porque tinham
ouvido absoluto e, dentro deles, a memória dos sons de cada nota musical."
Nelson Ayres, pianista
brasileiro, maestro da Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo – que não tem
ouvido absoluto
"Meu ouvido absoluto
me ajuda quando vou escolher instrumentos para meus arranjos. Consigo imaginar
uma música apenas lendo a partitura, como se fosse uma história num livro.
Sei como cada instrumento vai soar no conjunto sem precisar ouvi-lo."
Pedrinho Mattar,
pianista e arranjador brasileiro
Os
bem-dotados
Nem todos os gênios
musicais identificam qualquer nota de ouvido. Compositores como Wagner,
Stravinsky, Schumann e Ravel raramente conseguiam realizar essa proeza. Mas a
turma abaixo tinha ou tem ouvido absoluto comprovado.
Haendel (1685-1759),
compositor alemão
Mozart (1756-1791),
compositor e pianista austríaco
Beethoven (1770-1827),
compositor e regente alemão
Chopin (1810-1849),
compositor e pianista polonês
Béla Bartók
(1881-1945), compositor húngaro
Pierre Boulez,
compositor e regente francês, 75 anos
Arthur Rubinstein
(1887-1982), pianista polonês
Glenn Gould
(1932-1982), pianista canadense
Yo-yo Ma,
violoncelista chinês, 44 anos
Nat King Cole
(1919-1965), pianista americano
Oscar Peterson,
pianista canadense, 74 anos
Keith Jarrett,
compositor americano, 55 anos
Frank Sinatra
(1915-1998), cantor americano
Barbra Streisand,
cantora americana, 58 anos
Julie Andrews, cantora
inglesa, 65 anos
Stevie Wonder,
compositor americano, 50 anos
Yngwie Malmsteen,
guitarrista sueco, 37 anos
Ritchie Blackmore,
guitarrista inglês, 55 anos
Hermeto Paschoal,
composito brasileiro, 64 anos
Anatomia
do talento
Exames
de tomografia, no Canadá e na Alemanha, revelam a rota da percepção musical no
cérebro.
A onda da percepção
A expectativa de um
estímulo – como o de identificar uma nota musical tão logo ela seja tocada –
dispara do lobo temporal, a região auditiva do córtex, uma onda cerebral
chamada P300. Ela tem esse nome por ser uma onda de carga elétrica positiva e
por demorar 300 milésimos de segundo para atingir o córtex frontal, a camada
externa do cérebro onde os estímulos se tornam conscientes. A P300
funciona, portanto, como um marcador neurofisiológico da atenção, assinalando a
passagem da sensação à percepção.
Nos indíviduos com
ouvido absoluto, a mesma onda P300 parte do lobo temporal e busca a
identificação da nota no lado frontal esquerdo do cérebro, relacionado à
memória de longo prazo. A descoberta é do neurologista Robert Zatorre, do
Instituto Neurológico de Montreal, após examinar músicos com e sem essa
capacidade.
Quando alguém que não
tem ouvido absoluto é desafiado a identificar uma nota musical, a onda
P300 percorre o lado frontal direito do córtex, associado à memória
operacional.
A diferença cerebral
Músicos com ouvido
absoluto têm o lobo temporal do lado esquerdo maior que o dos outros músicos. A
descoberta foi feita pelos neurologistas Gottfried Schlaug e Helmut Steinmetz,
na Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf, Alemanha.
Aprendendo
com os mestres
Pássaros
canoros são muito mais musicais que os seres humanos
Com ou sem ouvido
absoluto, os músicos não são páreo para as aves canoras. O psicólogo Ron
Weisman, da Queen’s University, em Ontario, Canadá, comparou o ouvido do tentilhão
europeu (Fringilla coelebs) com o de artistas profissionais. Os bichos tinham
que entoar a nota certa para abrir uma caixa que continha alimento.
As dez aves estudadas
acertaram o tom 85% das vezes, enquanto dez músicos só conseguiram em 50% dos
casos.
A perícia
é justificada. Afinal, a música está ligada à sobrevivência das aves,
seja para o acasalamento, seja para a defesa, seja para a procura de comida.
"Os pássaros usam com freqüência as mesmas variações rítmicas e de tons,
combinações e permutações de notas encontradas na música", diz o ornitólogo Luis Baptista, da
Academia de Ciências da Califórnia, em São Francisco. A sul-americana corruíra
(Troglodytes musculus) canta numa escala cromática – aquela na qual todas as
notas, mais os sustenidos e os bemóis, são entoadas. Os rouxinóis da família
dos turdídeos entoam um tema, depois criam variações sobre ele e então retornam
à melodia original, como Bach fez nas famosas Variações Goldberg.
Baptista afirma que os
passarinhos inspiraram compositores. Quando o estorninho (Sturnus vulgaris) de
estimação de Mozart morreu, ele chamou os amigos para o enterro, cantou e leu
um poema no funeral. Oito dias depois, compôs o Divertimento ou Sexteto para
Cordas e Sopro. O ornitólogo está certo de que foi uma homenagem póstuma.
Beethoven, por sua vez, teria se inspirado num melro para escrever as primeiras
frases do rondó de um concerto de violino. Joseph Haydn (1732-1809) e Franz
Schubert (1797-1828) aproveitaram o grito da codorna. E o próprio Villa-Lobos
intitulou de Uirapuru uma de suas peças mais conhecidas.
Hit
parade animal
Pelo
menos três aves deveriam gravar CDs.
Contraponto consigo
mesmo
Os pássaros conseguem
realizar algo impensável para os humanos. Em vez de cordas vocais, eles têm
duas siringes – laringes inferiores que funcionam como caixas de ressonância.
Elas emitem, ao mesmo tempo, dois sons distintos, um dote que as aves usam para
cantar simultaneamente em diferentes tons. Fazem contraponto consigo mesmas.
O estorninho era o
pássaro de estimação de Mozart
O melro inspirou a
abertura de um concerto de Beethoven
O rouxinol
é capaz de criar variações sobre uma melodia
FONTE: http://super.abril.com.br/ciencia/dom-genio-441358.shtml
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