"Aharai, aharai!" - era
o grito de guerra do jovem capitão Ariel Sharon. "Sigam-me,
sigam-me!", gritava, e partia à frente das mais audaciosas e inesperadas
batalhas da história militar israelense. Os soldados iam atrás. Iriam onde quer
que fosse, avançando sob fogo cerrado. Só recuariam se perdessem dois terços
das tropas.
Se
hoje o general Sharon gritasse aharai, Israel ainda o seguiria. Mas ele sofreu
em 2006 um maciço ataque de um inimigo invencível, o próprio corpo de 77 anos,
gordo, frágil, comandado por nervos de aço. Sharon encerrou uma controvertida
trajetória na história israelense. Ele morreu neste sábado, aos 85 anos, depois
de 8 anos em coma, informou o hospital de Tel Aviv onde ele estava internado. O
quadro médico de Sharon começou a se deteriorar há dois meses e meio, e nos
últimos dias ele sofreu uma insuficiência renal que afetou vários de seus
órgãos vitais.
Foi na sua Unidade 101, base lendária do moderno
Exército israelense, que Sharon teve seu primeiro encontro com a morte. Era a
Guerra da Independência, 1948, e sua brigada lutava para conquistar o convento
de Latrun, entre Jerusalém e Tel-Aviv. Uma bala jordaniana perfurou-lhe o
estômago. Um soldado o carregou para a vida. Até recentemente os dois se
encontravam, amigos. Ordens do capitão Arik (leão em hebraico, o seu apelido):
não deixar nenhum ferido em campo de batalha, mesmo à custa de mais feridos, ou
mortos.
Arik
também viveu a morte em família. Margalit, a primeira mulher, morreu num
acidente de carro. A irmã dela, Lily, com quem ele se casou depois, morreria de
câncer, deixando-o inconsolado. E Gur, um dos filhos, morreu aos 10 anos
mexendo numa das armas antigas do pai.
Aharai, aharai (pronuncia-se arrarai) - e a tropa o
seguia. Nascido Ariel Scheinermann em 1928, e criado em Kfar Malal, na
Palestina sob mandato britânico, aos 14 anos ele já carregava armas, operando
em organizações paramilitares clandestinas que defendiam os colonos judeus.
Tinha a fama de rebelde, não cumpria ordens, e geralmente as excedia. Excesso:
esta sempre foi a marca de Sharon. Para ele, não era "olho por olho",
e sim "dois olhos por um olho".Talvez por isso também o chamavam de
Trator, Elefante e Rei de Israel. Nada o brecava. Uma vez, em 1956, ele levou
seus paraquedistas a saltar atrás das linhas egípcias, no passo de Mitla, no
Deserto do Sinai, para um furioso ataque em que perdeu dezenas de soldados.
Outra vez, penetrou com um comando em território jordaniano para vingar o
assassinato de uma israelense e seus dois filhos - a Operação Kibia. Uma tragédia:
42 casas de pedra foram dinamitadas, matando seus ocupantes, ao todo 69
pessoas, entre elas muitas crianças.
Aquele capitão era tão rebelde que o general Ezer
Weizman, pai da Força Aérea israelense, escreveu em suas memórias: "Na
guerra, eu o seguirei no meio do fogo e da tormenta, mas a vida política tem
valores diferentes." Era tão rebelde que o fundador de Israel, David Ben
Gurion, perguntou-lhe: "Arik, você já parou de mentir?" Tão rebelde,
que o primeiro-ministro Menachem Beguin, em seu primeiro governo, lhe recusava
a promoção a ministro da Defesa, justificando-se: "Sharon é capaz de
cercar com tanques o prédio do governo."
Mas Sharon se tornou ministro da Defesa de Beguin por
um único motivo: só ele, então o "rei da colonização" na Cisjordânia
e Gaza, ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, seria capaz de
retirar os colonos fixados em Yamit, no Sinai devolvido ao Egito em troca do
primeiro acordo de paz com um vizinho árabe. Assim como só ele, outra vez,
conseguiu retirar, em setembro de 2005, os colonos de Gaza. Ambos os lados o
respeitavam e o temiam.
Aharai! A rebeldia de Sharon deu-lhe a completa
confiança de seus soldados. Ele os comandou na contraofensiva da guerra de
1973, lançada pelo Egito quando os israelenses se recolhiam ao seu dia
religioso mais trágico, o Yom Kippur, o Dia do Perdão. Cumpria sua própria
agenda, e não ordens superiores. De repente, lá estava ele, no outro lado do
Canal de Suez, cercando todo o 3º Exército egípcio. Negou-lhe água e comida,
estrangulando-o enquanto o mundo inteiro protestava. Mas o mundo nunca lhe
importou. O mundo, ele dizia, nada fez enquanto Israel era atacado de surpresa,
por todos os lados, e sua população estava jejuando e rezando nas sinagogas.
"Quem não é meu amigo, é meu inimigo" - ele
não fazia concessões. Ao estourar a guerra no Líbano, em 1982, a marca do
excesso de Sharon brilhou. O porta-voz militar israelense deixou de falar com
os jornalistas locais ou estrangeiros. Os ministros do núcleo duro do governo
Beguin se diziam por fora do que acontecia, desinformados, não consultados.
Prevista para chegar só até a 45 km da fronteira Norte de Israel, a invasão do
Líbano se excedeu, entrando em Beirute e envolvendo a Síria. Sharon perseguiu
seu arqui-inimigo Yasser Arafat casa a casa, pulverizando edifícios em que ele
passava a noite, até expulsá-lo para a Argélia. E, 20 anos depois, ironia do
destino, o primeiro-ministro Sharon e o presidente da Autoridade Palestina,
Arafat, se reencontraram para transformar a Cisjordânia numa nova Beirute.
Beguin e Sharon queriam impor uma nova ordem no
Líbano. Com tanques e soldados, elegeram o cristão maronita Bashir Gemayel,
soterrado em seu QG por uma poderosa bomba às vésperas da posse. As forças
cristãs tomaram as ruas para uma vingança, quando Israel era senhor absoluto em
Beirute. As milícias falangistas cristãs penetraram nos campos palestinos de
Sabra e Chatila e perpetraram um massacre, matando cerca de 800 homens,
mulheres e crianças em três dias. Uma comissão de inquérito israelense responsabilizou
Sharon "indiretamente" por nada ter feito para impedir ou interromper
o massacre. E ele caiu do Ministério da Defesa.
Eu vivi um dos excessos de Sharon. Estava em Beirute
quando o cessar-fogo foi obtido pelo diplomata americano Philip Habib, no verão
de 1984. Os sinos das igrejas repicavam. Tiros eram disparados para o ar por
libaneses eufóricos. Mas o que vinham fazer naquele momento os aviões
israelenses sobre Beirute? Eles cruzaram 220 vezes os céus da cidade.
Despejaram 44 mil bombas. O presidente Ronald Reagan chamou Beguin ao telefone
e transformou a saudação israelense, shalom (paz), numa ordem.
Esse era Sharon. O general Moshe Dayan só não o levou
certa vez à Corte Marcial porque não ficaria bem julgar um oficial por ter
feito mais do que o mandado. Normalmente, julgam-se militares que nada fizeram,
acovardaram-se. Fora do governo, só lembrado nas ruas como o "buldôzer",
ele mudou de vida. Tentou ser recebido na Casa Branca. O ignoraram. Costurou um
acordo secreto com o Líbano. O invalidaram imediatamente. Organizou excursões
turísticas e políticas às colônias da Cisjordânia e Gaza, quando os EUA as
denunciaram como "obstáculos para a paz". O repudiaram. Mas ele
voltou. E precisou apenas passear provocativamente pela Esplanada do Templo,
onde hoje estão as mesquitas de Omar e Al-Aqsa, para provocar uma nova intifada
palestina que o reconduziu ao poder, há cinco anos.
Os israelenses o elegeram como antídoto ao terrorismo
crescente e aos distúrbios permanentes na Cisjordânia e Gaza. Só ele, Arik,
para enfrentá-los. Dominante, durão, Sharon reduziu a sua própria oposição a
fragmentos no Parlamento. Com a estratégia militar de surpreender a todos, mas
agora em guerra política, ele abandonou o partido nacionalista de direita
Likud, que fundou à revelia de Beguin, e criou o Kadima, ou "Pra
Frente", mais ao centro. Causou um terremoto em Israel. Agora, ele admitia
a ideia de desterrar algumas das colônias da Cisjordânia de que tanto antes se
orgulhara e defendera. O herói de guerra passou a ser visto também como um
herói da paz. E um traidor.
O Kadima era o favorito das eleições de março de 2006
quando Sharon retirou-se no dia 4 de janeiro para o seu rancho, onde se
preparava para uma pequena cirurgia no coração na manhã seguinte. Foi
surpreendido pelo seu último e imbatível inimigo, o próprio corpo. Um acidente
vascular cerebral (AVC) o derrubou. Levaram-no de picape para o hospital. Se
fosse de helicóptero, lamentaram médicos na época, haveria mais chances de
salvá-lo. O general resistiu oito anos até render-se, seus órgãos o
abandonando, um a um.
Âncora da TV israelense então, o atual ministro da
Economia, Yair Lapid, perguntou-lhe numa entrevista pouco antes de iniciar sua
última batalha, agora acabada: "O que o povo ainda não conhece a seu
respeito?" Ele sorriu timidamente, e revelou: "Adoro filmes
românticos."
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