domingo, 24 de junho de 2012

CULTURA DO MEDO por Barry Glassner


Embora concentrada nas mãos de poucas pessoas, algumas envolvidas diretamente com política, a mídia brasileira é muito semelhante à americana. Por isto, a publicação de CULTURA DO MEDO, de Barry Glassner , foi realmente importante.

O livro prefaciado por Paulo Sérgio Pinheiro é fartamente documentado. Ao fim de cada capítulo o autor indica aos leitores quais foram as fontes consultadas, de maneira que suas conclusões não podem ser consideradas arbitrárias.
Em cada um dos capítulos Barry Glassner se detêm sobre um tema diferente, de maneira a dar um painel bastante completo e variado de todos os principais instrumentos empregados pela mídia americana para amedrontar a população. Consciente ou inconscientemente os jornalistas americanos desviam constantemente a atenção dos leitores e espectadores para assuntos menos relevantes, desviando sua atenção dos problemas reais que podem e devem ser atacados para melhorar as condições de vida da população.
No primeiro capítulo o autor trata dos PERIGOS DUVIDOSOS NO TRÂNSITO E NAS UNIVERSIDADES. O diagnóstico do autor impressionante: “Relativamente a quase todos os temores americanos atuais, em vez de se enfrentar os problemas sociais perturbadores, a discussão publica concentra-se em indivíduos perturbados. Em vez de políticas públicas insanas, os motoristas dementes ocuparam o centro do palco na cobertura relativa ao trânsito. Quando se faia alguma referência aos problemas sérios enfrentados pelos motoristas, esses eram prontamente postos de lado, transformando-se em um falatório sobre motoristas violentos.
No Brasil já nos acostumamos às narrativas matutinas dos acidentes de trânsito que ocorreram de madrugada ou no começo da manhã. Cada telejornal tem seu próprio helicóptero para mostrar o caos urbano criado pelos acidentes. Quando o acidente tem múltiplas vítimas, os jornais da tarde e da noite repassam as mesmas coberturas. Na grande maioria das vezes ficamos sabendo que os responsáveis foram motoristas que estavam embriagados, dormiram ao volante ou violaram leis de trânsito.
Me parece óbvio que se os motoristas estavam embriagados é porque puderam comprar bebidas livremente, inclusive na estrada.
Entretanto, nunca vi um só jornalista brasileiro perguntar ao dono de uma grande cervejaria se ele apoiaria a proibição de venda de bebidas alcoólicas em postos de gasolina. E os donos de redes de distribuição de combustível e bebidas em postos, o que tem a dizer sobre o assunto? Nada enquanto não forem questionados pela mídia.
O silencio da mídia em relação a esta questão pode ser creditada à cumplicidade. A mídia não toca no assunto porque ele não interessa aos políticos, que por sua vez não o consideram importante porque recebem dinheiro dos empresários do setor para permitir que os negócios possam fluir. Ao fluir, os negócios rendem gordas propaganda que são abocanhadas pela própria mídia. E assim a tragédia social se perpetua em benefício de alguns.
Porque os motoristas brasileiros dormem ao volante? Porque gostam de dirigir com sono ou porque são obrigados a realizar jornadas de trabalho estafantes em razão de ganharem pouco? Os donos de transportadores devem ter alguma coisa a dizer sobre o assunto, mas nunca foram questionados ao vivo por qualquer rede de televisão ou jornal de circulação estadual ou nacional.
Seguindo o exemplo do jornalismo americano, o jornalismo brasileiro parece que prefere concentrar-se na tragédia e culpar o motorista. E todo dia um novo motorista culpado se torna peça chave nos jornais matutinos. É realmente lamentável.
Barry Glassner afirma que os “... pseudo-superegos representam novas oportunidades de evitar problemas que não queremos enfrentar, tais como ruas superlotadas e superabundância de armas, assim como aqueles que já cansamos de confrontar. Um exemplo do ultimo caso envolve o ato de dirigir embriagado, comportamento que causa cerca de 85 vezes mais mortes do que ocorrências associadas à fúria no trânsito (cerca de 17 mil contra 200).”
Há algum tempo a imprensa brasileira notabilizou um caso de fúria no trânsito ocorrida na cidade São Paulo envolvendo um motorista que, se não em engano, atropelou um motoqueiro e fugiu causando estragos até ser detido pela polícia. A cobertura desmedida dado a este evento isolado demonstra como nossos escribas estão sempre à procura de imitar seus colegas norte-americanos.
No segundo capítulo, o autor se concentra sobre a CRIMINALIDADE NO NOTICIÁRIO. Logo no princípio do capítulo ele adverte que “...temos que ter preocupações com a criminalidade, o consumo de drogas, o abuso de crianças e outras calamidades. A questão é: como nos atrapalhamos tanto sobre a verdadeira natureza e extensão desses problemas?”
Há pelo menos dez anos o jornalismopinga sangue” ou “risca faca” tomou conta do horário nobre de algumas emissoras de televisão. Alguns
apresentadores de televisão se notabilizaram explorando a tragédia e alimentando o medo da população. Cenas de perseguições em favelas, tiroteios em praça pública, cidadãos alvejados e algemados se tornaram tão comuns que a população é levada a crer que existe um bandido atrás de cada poste. O problema é que nem todos os bairros têm postes de luz e muitos dos que têm estão no escuro por causa de luminárias quebradas ou apagadas. Mas todos os dias a televisão repassa a mesma ladainha de desgraças e nenhum jornalista pergunta: o que pode ser feito para melhorar as condições de vida da população na periferia?
Barry Glassner explica esta falta de curiosidade jornalística. Segundo ele “...os jornalistas se vangloriam de ser desconfiados em relação às informações que recebem. O jornalista adirão “usa seu ceticismo como um cavaleiro medieval usava sua armadura”, disse Shelby Coffey, diretora da ABC News e ex-editora do Los Angeles Times. No entanto, quando se trata de uma grande história de crime, um jornalista se comporta como o garoto mais certinho do colegial para quem a garota mais popular da escola pediu ajuda em seu projeto de ciências. Grato pela oportunidade, ele não se preocupa em fazer muitas perguntas.”
Curiosamente, muitos jornalistas brasileiros também não tem o hábito de perguntar. E quando perguntam, quase sempre desviam o foco do problema real concentrando-se no efeito.
Como os americanos, nós brasileiros também tivemos nossos padres pedófilos. A cobertura dada pela mídia brasileira a questão foi muito similar à americana, cujos desdobramentos podíamos até ver concomitantemente em nossos jornais noturnos. “O ensaísta político Walter Russel Mead mostrou que o enfoque da mídia causou um desserviço mais sutil. Ao fazer reportagens sobre padres pervertidos, os jornalistas acreditam que estão suscitando uma questão mais ampla sobre o colapso moral de uma das instituições espirituais mais antigas e influentes da humanidade. No entanto, como Mead assinala, a atenção obsessiva dedicada aos padres pedófilos obscurece problemas mais graves existentes na Igreja. Em particular, ele cita a corrupção em partidos políticos europeus apoiados pela Igreja...
Durante toda a cobertura feita sobre a crise do “valerioduto” nenhum telejornal brasileiro fez a menor menção sobre as ligações do PT com a Igreja Católica. Entretanto, as ligações entre do partido de Lula e a Igreja são históricas. O ex-Presidente da Câmara petista envolvido no “valerioduto” saiu de uma Comunidade Eclesial de Base. Após ser eleito, o próprio Lula agradeceu pessoalmente aos votos conseguidos no púlpito aos bispos reunidos no interior de São Paulo. Até que ponto a corrupção do PT tem alguma relação com a corrupção na Igreja Católica no Brasil? Esta pergunta jamais foi feita, certamente porque no Brasil questionar a Igreja é tabu. Mas porque diabos é tabu? Então não vivemos num Estado laico em que os cidadãos têm liberdade de consciência e a imprensa é livre?
O livro de Barry Glassner tem nove capítulos, que tratam desde juventude em risco e mãos monstruosas até doenças metafóricas e acidentes aéreos. Negros e tráfico de drogas também foram abordados.
Ao tratar do problema das drogas, por exemplo, o cientista social alerta para o fato de que o uso de drogas legais é socialmente mais relevante que o tráfico de entorpecentes. Segundo ele mais “...americanos usam drogas lícitas por razões não-médicas do que usam cocaína ou heroína; centenas de milhões de indiciamentos são usados de modo ilícito todos os anos. Mais da metade das pessoas que morrem por problemas médicos associados a drogas ou buscam tratamento para esses problemas estão consumindo medicamentos vendidos com receita. A própria American Medical Association estima que um entre 20 médicos seja completamente negligente na prescrição de medicamentos, e, de acordo com a Drug Enforcement Agency (DEA), no mínimo 15 mil médicos vendem receitas ilegais. No entanto, menos de 1% do orçamento relativo ao combate às drogas destina-se ao controle do uso abusivo de medicamentos vendidos com receita.”
No Brasil o problema também existe, mas pouco ou nenhum interesse desperta na mídia. O uso de “rebites” por motoristas de caminhão é notório. Mesmo assim, nenhum laboratório que fabrica os medicamentos vulgarmente denominados “rebites” é encurralado pelos jornalistas. Em geral os noticiários lamentam a destruição da carga, os transtornos na auto-estrada e a morte do cidadão que dormiu ao volante.
Conheci um caminhoneiro que sofreu danos neurológicos sérios e incuráveis em razão de ter abusado de “rebites” para poder sustentar sua família. Nenhum jornalista se interessou por sua estranha doença que o obrigava a andar com um bilhete no bolso contendo nome, endereço e telefone. Ele apagava em qualquer lugar e às vezes permanecia desacordado por dois ou três dias. Acabou afastado do trabalho porque estava incapacitado para dirigir. Encontrei-o num Shopping de Osasco no final de 2004, estava bastante chateado porque não o benefício previdenciário não lhe permitia pagar os estudos dos filhos. Hoje seus filhos são órfãos porque ele morreu aos cinqüenta e poucos anos de idade
A venda de medicação vencida, o desperdício de estoques de medicamentos públicos e a comercialização de remédio pirata tem espaço garantido nos telejornais. O abuso de prescrição ou a venda de receitas por médicos parecem não estimular indagação jornalística. Vez por outra um caso de automedicação chama a atenção. A venda indiscriminada de medicamentos parece não interessar a ninguém. O silêncio da mídia certamente pode ser creditado à cota de propaganda que as redes de farmácia e os laboratórios farmacêuticos atribuem aos canais de televisão. Quanto dinheiro está envolvido nisto? Nenhum jornalista sabe e se sabe não está disposto a relevar a informação.
A questão da venda indiscriminada de remédios e receitas parece não interessar aos jornalistas. Então deveriam interessar os políticos, certo?
Errado! Barry Glassner é enfático ao frisar que “...a dependência dos políticos em relação à indústria farmacêutica para o levantamento de fundos para campanhas eleitorais e a dependência da imprensa em relação à mesma indústria para receitas publicitárias têm algo a ver com aquelas formas de consumo abusivo que eles deploram.” E no Brasil, quanto dinheiro os laboratórios e redes de farmácias dão aos políticos? Quem sabe um dia se faça uma CPI do “remedioduto”, antes disto o assunto continuará um mistério tremendo.
Adquiri uma edição de 2003 da obra resenhada num sebo, por isto não sei dizer quanto custa o livro novo. Entretanto, qualquer que seja o preço do mesmo seu valor é inestimável. A obra merece ser lida por jornalistas e, principalmente, por leitores. Afinal, mais do que os jornalistas os leitores são vítimas desta cultura do medo que também está sendo imposta aos brasileiros pela mídia em cumplicidade com os políticos.

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