Rodney Stark,
sociólogo, ateu e americano, escreveu, no seguimento de um conjunto de outros textos que
iam já nesse sentido, um livro que, tendo emboras algumas falhas (aumentadas, aliás, pela edição
portuguesa, que se apresenta pouco cuidada), tem a enorme virtude
de fundamentadamente se insurgir contra o politicamente correcto há muito tempo
instalado no mundo das idéias, afirmando desassombradamemente as vantagens do
«influxo determinante do cristianismo
em geral, e do catolicismo em particular, na
configuração e no rosto peculiares da cultura europeia.»
Em The
Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western
Sucess, publicado em 2005, mostra, resumidamente: a) que o domínio
ocidental se deve fundamentalmente ao surgimento, na Europa, do sistema
capitalista; b) que esta possibilidade e desenvolvimento do capitalismo se
devem à extraordinária confiança que a Europa descobriu na razão; c) que esta
vitória da razão – como lhe chama – tem as suas principais raízes no
cristianismo, que, ao contrário das outras religiões, vê a razão e a lógica
como ferramentas fundamentais para a descoberta da verdade religiosa.
Recomendando vivamente a sua leitura, que ilumina e limpa o sótão
frequentemente pouco visitado das nossas ideias, aqui deixo um pequeno excerto
do Prefácio:
«Quando os europeus começaram a explorar o mundo, a maior surpresa não foi a existência do
hemisfério ocidental mas a própria superioridade
relativamente ao resto do mundo. Os grandes
povos Maia, Asteca e Inca estavam indefesos perante os conquistadores europeus; as
famosas civilizações do Oriente – a China, a Índia, e até os países muçulmanos – eram primitivas em comparação com a Europa do século XVI. Como sucedeu isso? Porque
razão, durante séculos, os europeus
foram os únicos a possuir óculos, chaminés, relógios
que marcavam a hora certa, tropas bem
armadas e um sistema de notação musical? Como é que os países que tinham nascido da
barbárie e dos escombros da antiga Roma ultrapassaram de
tal maneira o resto do mundo?
Há autores modernos que atribuem o segredo
do sucesso europeu a
uma posição geográfica favorável. (…) Outros afirmam que o desenvolvimento ocidental foi devido
ao ferro, às armas ou aos navios, e outros ainda apontam uma agricultura mais produtiva. (…) A resposta mais convincente atribui o domínio
ocidental ao surgimento do sistema
capitalista, que também só surgiu na Europa. Mesmo os
inimigos mais ferozes do capitalismo reconhecem que gerou uma produtividade e
um progresso nunca antes imaginado. (…) O capitalismo conseguiu este “milagre”
através do investimento regular em maior capacidade produtiva, e
através da motivação financeira de administradores e trabalhadores.
Partindo do princípio que o capitalismo
foi realmente responsável pelo grande avanço da Europa, resta explicar porque que razão esse avanço só se deu na Europa.
Alguns datam o nascimento do capitalismo da Reforma Protestante; outros, das
mais variadas circunstâncias políticas. Mas se aprofundarmos a investigação
torna-se evidente que a raiz verdadeiramente fundamental do capitalismo e do
desenvolvimento do Ocidente é uma extraordinária
confiança na razão.
A
Vitória da Razão explora como a razão
ganhou importantes batalhas e moldou de forma única a cultura e as instituições
ocidentais. A vitória mais importante foi a do Cristianismo. As outras religiões
mundiais sublinham o mistério
e a intuição, mas o Cristianismo vê a razão e a lógica como ferramentas fundamentais para
a descoberta da verdade religiosa. A confiança na razão foi influenciada
pela filosofia grega. Mas a filosofia grega teve pouca influência nas religiões gregas.
Estas permaneceram típicos cultos de mistério, nos quais a ambiguidade e as
contradições lógicas eram provas de uma origem sagrada. (…) Em contraste, os fundadores da Igreja pregaram, desde sempre, que a razão é um bem supremo, um dom de Deus, e a ferramenta que permite um desenvolvimento
progressivo na compreensão da Bíblia e da
Revelação. O Cristianismo é, portanto, voltado para o futuro, enquanto as outras grandes religiões
acreditam na superioridade do passado. Pelo menos em princípio, se nem sempre na
prática, a doutrina cristã pode ser modificada em função do progresso, como produto da razão.
A confiança no poder da razão entranhou-se na cultura ocidental, apoiada por autores escolásticos e
pelas grandes universidades medievais, fundadas pela Igreja. A confiança na razão estimulou o estudo científico e o desenvolvimento de teorias e práticas democráticas. O surgimento do capitalismo foi outra
vitória da razão de inspiração religiosa, pois o capitalismo é, essencialmente, a aplicação sistemática e contínua
da razão ao comércio – um sistema descoberto
pelos grandes centros monásticos.
Ao
longo do século XX, a maior parte dos intelectuais ocidentais demonstraram que
o imperialismo europeu tinha origens
cristãs. Recusaram-se, no entanto, a reconhecer
que o Cristianismo foi um factor na supremacia do Ocidente, excepto pela intolerância. Consideraram que o Ocidente ultrapassou o
resto do mundo no momento em que superou os “obstáculos religiosos” ao
progresso, especialmente os que se opunham à ciência. É um disparate! O sucesso do Ocidente, inclusive o desenvolvimento
da ciência, foi construído inteiramente com
base em fundamentos religiosos e as pessoas que o tornaram possível foram cristãos devotos. Infelizmente, mesmo os historiadores
que concederam ter sido o Cristianismo um
factor no desenvolvimento do progresso ocidental, limitaram-se a salientar os resultados
religiosos positivos da Reforma
Protestante. É como se os mil e quinhentos anos de Cristianismo
até esse acontecimento não tivessem a menor importância ou fossem,
até, prejudiciais. Um anti-Cristianismo acadêmico de estirpe inspirou o mais célebre livro jamais escrito sobre as origens
do capitalismo.
No
início do século XX, o sociólogo
alemão Max Weber publicou um estudo que se
tornou espantosamente influente: A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Na sua obra, Weber propõe que o capitalismo surgiu na Europa, porque, entre todas as religiões do mundo, apenas o Protestantismo oferecia uma visão moral que levava as pessoas a restringir o seu consumo material e procurar activamente a riqueza. (…).
Talvez
devido à sua elegância, a teoria foi universalmente aceite apesar de estar errada. A Ética Protestante continua a ter um
estatuto quase segrado entre sociólogos, apesar de os historiadores económicos
menosprezarem as ideias de Weber, aliás pouco fundamentadas; afinal, o
capitalismo surgiu na Europa vários séculos antes da Reforma Protestante. Hugh Trevor-Roper explica: “A idéia de que o
capitalismo industrial, em grande escala, era ideologicamente impossível antes
da Reforma, é destruída pelo simples facto que o
capitalismo já existia.”
(…) Os países do Norte apenas tomaram a posição que fora ocupada, durante muito
tempo e muito bem, pelos antigos centros capitalistas do Mediterrâneo. Nada
inventaram, nem na tecnologia nem na administração de companhias. Além disso,
durante o período crítico de desenvolvimento económico, esses centros do
capitalismo nórdico eram católicos e não protestantes – a Reforma era ainda num
futuro longínquo.
(…)
Apesar de enganado, Weber tinha
toda a razão em afirmar que as idéias religiosas tiveram forte influência
no desenvolvimento do
capitalismo na Europa. As condições
materiais necessárias ao desenvolvimento do
capitalismo existiram em muitas civilizações, e em muitas épocas, incluindo China, Índia,
Islão, Bizâncio, e provavelmente também Roma e Grécia antiga. Porém, nenhuma
destas sociedades desenvolveu o capitalismo, porque nenhuma delas desenvolveu
uma visão ética compatível com a dinâmica deste sistema económico.
Pelo contrário, as maiores religiões não
Ocidentais apelaram ao ascetismo e condenaram os lucros, a riqueza foi negada a agricultores e comerciantes por elites
apreciadoras do consumo e da ostentação. Porque foi a Europa um caso à parte? Devido ao compromisso cristão com a teologia racional que pode ter sido um factor determinante na Reforma mas que claramente já existia muito antes: há mais de um milênio.
Mesmo assim, o capitalismo só surgiu em alguns lugares. Porque não surgiu em
todos? Porque, em certas sociedades
europeias, como aconteceu em quase todo o resto do
mundo, o seu desenvolvimento foi impedido por tiranos: a liberdade também é necessária para o capitalismo. Isto leva-nos a outra questão:
por que razão a liberdade foi tão rara na maior parte do globo, mas
foi sustentada em reinos e cidades-estado medievais? Eis outra vitória da
razão. Antes de qualquer Estado europeu medieval ser governado por grupos
eleitos, havia teólogos cristãos que elaboraram teorias sobre a natureza da igualdade e sobre os direitos do indivíduo – o trabalho de teóricos
políticos tão “seculares” como John
Locke no séc. XVII tem raízes em axiomas
igualitários provenientes de filósofos religiosos.
Para
concluir: o sucesso do Ocidente deve-se a quatro grandes vitórias da razão. A primeira foi o desenvolvimento, dentro da teologia cristã, da confiança no progresso. A segunda foi a forma como a confiança no progresso incentivou inovações tecnológicas e de organização, muitas vezes apoiadas por congregações religiosas. A terceira vitória foi que, graças à
teologia cristã, a razão influenciou a filosofia
e a prática política de
tal maneira que, na Europa medieval, surgiram Estados receptivos, com um
elevado grau de liberdade pessoal. A vitória final foi a aplicação da razão ao comércio, que resultou no surgimento do capitalismo
em ambientes estáveis proporcionados por esses Estados. Foram estas as vitórias
que levaram a Europa a vencer.» *
* STARK, Rodney, A Vitória da Razão – Como o
Cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre
económico do Ocidente, Ed. Tribuna da História, Lisboa, 2007 (tradução de
Mariana de Castro), págs. 41–46.
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