Para ilustrar o que eu quero dizer com isso, basta olhar para as prerrogativas do pater familias, o pai de família, no lar da antiguidade romana. Podia ser um patriarca neste sentido somente um homem que fosse cidadão pleno em Roma. A liderança do pai de família era inquestionável e abrangia (ao menos em potencial) todos os aspectos da vida.
A vida e a morte de cada membro do domicílio (em alguns casos, incluindo a esposa) estavam ‘sob a mão’ do pai de família. Os filhos e empregados daquela casa deveriam se sujeitar à liderança patriarcal com devoção e dedicação. Se quisesse, o patriarca tinha até mesmo o direito vender seus filhos para serem escravos. E pior: tinha o dever de matar seu bebê que nascesse deficiente.
Hoje em dia não é assim. Ao menos nos países influenciados por uma cultura que foi cristã no passado. Uma cultura que, ao invés de ‘batizar’ esse patriarcalismo exacerbado, fez uma reflexão crítica e usou o próprio princípio dos grandes pensadores da antiguidade para defender, contra os antigos, a diferenciação das esferas de autoridade. Por consequência, essa cultura, apesar de manter a autoridade dos pais dentro casa, foi tirando dela qualquer excesso ilegítimo.
O cristão confessa que o Estado tem o poder da espada para combater a agressão criminosa e violenta. O cristão não confessa que o pai de família tem a autoridade de coagir dessa forma. Nesse sentido, o cristão, mesmo ao defender os chamados ‘valores tradicionais de família’ jamais defenderá o direito do pai de escravizar seus filhos, violentar a esposa e agredir qualquer pessoa que esteja sob sua proteção paternal. O pai cristão não tem poder de vida e morte sobre os membros de seu domicílio. Ponto.
Ao mesmo tempo, o cristão confessa sua fé na bíblia como relevante para os dias de hoje. Uma das prerrogativas que a bíblia concede aos pais como autoridades no lar é a da punição corporal. A bíblia não entra em detalhe, mas uma coisa é bem clara: palmada é uma coisa. Violência doméstica é outra. O pai que não sabe a diferença entre os dois deve ser castigado não somente pela autoridade eclesiástica (que, com as chaves do céu, pode chegar a ponto de excomungar o pecador que não se arrepende), mas também pela autoridade civil (que, com o poder da espada, tem a prerrogativa de combater crimes violentos como os desse tipo).
Se palmada é uma coisa e violência doméstica é outra, então a discussão muda de nível. Quando a dita ‘Lei da Palmada‘ é discutida, ela coloca “castigo corporal” em paralelo com “tratamento cruel e degradante”. O legislador que faz isso apaga a distinção milenar e praticamente universal entre palmada e violência doméstica.
A Lei da Palmada é uma falsa denúncia de concentração de autoridade doméstica nos pais. Já existem leis contra a agressão. Leis que, por sinal, têm sido mal aplicadas, a julgar pelo número de casos de violência doméstica que ainda ocorrem. O que a Lei da Palmada quer mudar, na verdade, diz respeito à ‘palmada’ e não à violência doméstica em si. Em outras palavras, a Lei da Palmada quer regulamentar o método de educar os filhos. O Estado quer aprovar um método mais ‘progressivo’ e rejeitar o método mais ‘tradicional.’
Repare: a palmada tem eficácia bastante limitada dependendo da situação. Qualquer psicólogo irá atestar que, a partir de uma certa idade, a criança é capaz de ser persuadida e de entender um comando verbal. É só numa janela limitada de tempo que a palmada é eficaz para educar. Nessa janela, a criança ainda é pequena e a força requerida para o efeito desejado é mínima se comparada à força exercida no fenômeno da violência doméstica. Não há como confundir as duas coisas.
Por esse e outros motivos é necessário manter a distinção entre palmada e violência doméstica. Ao procurar regulamentar a palmada, o Estado brasileiro não tem buscado limitar a autoridade dos pais à esfera do lar, e sim inflar a autoridade estatal para ocupar a esfera da criação de filhos. Isso não surpreende. A história do sistema educacional público e da legislação de ‘moral e bons costumes’ está aí para comprovar que o Estado de fato quer ser pai, mãe e babá de todos.
O caso da Lei da Palmada nos alerta para algumas coisas importantes. Primeiro, é essencial manter o princípio da pluralidade e da diferenciação das esferas de autoridade. A autoridade paterna ou materna não é total. A autoridade estatal também não. Essas duas autoridades não se confundem. As duas esferas não se confundem. Elas só se confundem na autoridade divina. Somente Deus é ao mesmo tempo Pai e Juiz, Cabeça e Rei. Ao vermos legislação desse tipo, é importante ver qual distorção tem ocorrido, mesmo que a lei alegadamente defenda um princípio de autoridade limitada.
Segundo, onde houver violência e agressão existe espaço para o agente que faz uso legítimo da punição justa à violência e agressão. No nosso mundo contemporâneo, temos esse agente chamado ‘Estado’ que, em tese, deveria se limitar a cumprir esse papel mas, na verdade tem sido ele mesmo agressor ilegítimo. O caso da Lei da Palmada ilustra mais uma vez essa violação dos limites da autoridade civil. O cristão reformado não se engane. Parafraseando Sto. Agostinho: o Estado sem justiça é praticamente uma máfia de salteadores.
Por fim, existe também o perigo de estarmos defendendo um princípio aqui e contrariando o mesmo princípio em outro assunto. Você não quer que o Estado decida como você deve educar seu filho, e você está disposto a aceitar que o Estado tem a prerrogativa de punir a agressão quando ela ocorrer. Pois bem. Quando o assunto da ‘moral e bons costumes’ aparecer, pense duas vezes antes de defender o gigantismo estatal para impor de cima para baixo os ‘valores tradicionais’ que você deseja que se espalhem no mundo à sua volta.
O cristão reformado crê no poder transformador do evangelho. Esse poder o Estado não tem. Quer usar a política para ver uma cultura mais cristã? Um bom começo é parar de defender o Estado babá e começar a defender a noção de que cada um deve agir de forma responsável. E não se esqueça de confiar mais no poder transformador do evangelho. Fazendo assim, você estará avançando um passo na direção de praticar um princípio que mal tem saído do papel e já tem dado muito bom fruto na nossa civilização: o princípio da autoridade limitada.
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