Por Danilo Fernandes
Você,
leitor cristão, imagine-se na seguinte situação: depois de uma abençoada
reunião de oração e estudo da Palavra de Deus, é hora daquela gostosa comunhão
regada a comes e bebes. Ato contínuo, o dono da casa abre uma garrafa de vinho
e oferece a bebida aos presentes. Se você acha que se sentiria constrangido e
inseguro entre aceitar e ser criticado pelos outros ou recusar e perceber, meio
sem graça, que todos provaram da bebida, saiba que não está sozinho. A maioria
dos evangélicos já passou por situação semelhante, se não na casa de irmãos na
fé, no ambiente de trabalho ou no lazer com amigos. Consumir álcool, para os
crentes brasileiros, é mesmo como um tabu, e até aqueles que são membros de
denominações ou grupos cristãos mais liberais em relação ao assunto têm certa
preocupação em serem vistos com o copo na mão.
O que a
maioria dos evangélicos brasileiros desconhece é que esta visão estigmatizada
acerca do álcool é coisa muito recente na história da Igreja. Ao longo de quase
2 mil anos de cristandade, prevaleceu a noção de que a bebida, em si, é neutra,
uma dádiva do Senhor que traz alegria – sendo o seu consumo excessivo, ou
embriaguez, esta sim, pecaminosa. De fato, muitos crentes se escandalizariam ao
descobrir que, na galeria dos heróis da fé protestante, homens e mulheres de
Deus consumiam bebida alcoólica, e ficariam surpresos por saber que certos
segmentos da Igreja, em nome do abstencionismo, alteraram até mesmo um dos
ritos mais importantes, ao lado do batismo: a celebração da eucaristia. O detalhe
é que o vinho é mencionado reiteradamente nas Escrituras, tanto no sentido
literal como por expressão poética. E o produto da uva era parte fundamental da
cultura, da religiosidade e da economia do povo hebreu, desde sua origem.
Em
relação ao álcool, os cristãos se dividem basicamente em três correntes: os
abstêmios, que optam por beber eventualmente, mas não combatem quem pensa
diferente; os temperantes – ou moderacionistas, que assumem beber em
determinadas circunstâncias e com moderação –; e os proibicionistas, que
advogam a condenação total ao ato de beber álcool. Por aí, já se tem uma noção
do tamanho do problema. Com ascendência religiosa ligada ao arminianismo das
tradições batistas do sul dos Estados Unidos e ao pentecostalismo clássico, o
movimento evangélico brasileiro tende historicamente à rejeição total ao
álcool, posição que, no entanto, tem tantas motivações culturais quanto
espirituais. E a prática evangelística dominante no país, muito pautada na
oposição ao catolicismo, faz com que a maioria dos evangélicos brasileiros se
surpreenda ao descobrir diferenças culturais marcantes entre eles e os cristãos
de outros povos, em especial os europeus. De fato, na Europa, até mesmo os
pentecostais não costumam ter qualquer pudor diante de um canecão de vinho ou
de uma reluzente tulipa de cerveja.
“Depois
de ter vivido em diversos países, tenho percebido que a questão da bebida está
mesmo muito ligada à cultura dos missionários que chegaram a cada região”,
confirma o bispo Josep Rossello Ferrer, moderador da Igreja Anglicana Reformada
no Brasil. No Velho Mundo, os cristãos veem o ato de beber com maior
normalidade que os americanos, por exemplo – por isso, muitas práticas na
Igreja brasileira de hoje são frutos de ideias religiosas oriundas dos Estados
Unidos, o que explica porque as denominações surgidas do esforço missionário
americano do século 19 (batistas e presbiterianos, por exemplo), guardem em sua
memória a visão abstencionista.
Líder de
uma comunidade anglicana em Pindamonhangaba (SP), Ferrer, que é espanhol,
observa que sua organização religiosa não tem uma posição oficial sobre o
assunto. “Entendemos que a decisão de beber ou não é uma questão de liberdade
cristã. Alguns irmãos podem usar álcool sem nenhum problema de consciência,
enquanto outros entendem que isso seria pecado”. Por isso, o sacerdote faz
questão de não tratar o assunto como dogma. “Não se pode afirmar que a Bíblia
condena a bebida. Encontramos nas Escrituras avisos claros contra o estado de
embriaguez, que leva à perda do controle dos sentidos, mas não vemos nenhuma
restrição ao consumo moderado.”
MODERAÇÃO
SEM CONDENAÇÃO
Tal
visão encontra reflexo na opinião de muitos crentes. Para o fotógrafo e
missionário Eduardo Ferreira, 39 anos, de tradição batista (é neto de pastor) e
hoje ligado à Igreja Bola de Neve, o episódio bíblico em que Cristo transforma
água em vinho é emblemático: “Acho que havia uma lição extra ali”. Recentemente
retornado do Havaí (EUA), onde praticava surfe e liderava uma célula de
crentes, ele observa que a questão cultural não pode mesmo ser deixada de lado
na análise da questão, mas recomenda cuidado. “No exterior, convivi muito com
cristãos que consumiam álcool com moderação, da mesma maneira como presenciei
pessoas estragando suas vidas com bebida”. Para Duda, como é conhecido, o
potencial destrutivo do álcool explica porque mesmo o uso moderado do vinho
seja um escândalo para crentes brasileiros. “O choque cultural é real.
Lembro-me de ter recebido, na minha célula aqui no Brasil, um casal francês que
trouxe uma garrafa de vinho para a Ceia. Houve constrangimento entre os
presentes. Eu acho que não faria qualquer diferença, mas, naquele contexto, o
incômodo dos irmãos foi, por si só, razão para manter a garrafa fechada.”
“O tema
sempre será delicado, e por isso devemos tratá-lo biblicamente, mas nunca na
base do ‘pode ou não pode’”, opina, por sua vez, Hernandes Dias Lopes, pastor e
escritor de confissão presbiteriana. “Este é um caminho que pode construir uma
ética farisaica e uma espiritualidade rasa”. Para Hernandes, há uma dificuldade
bíblica de se fazer uma defesa radical pela abstinência, de maneira que a
questão deve ser ponderada. Ele lembra que a ética cristã não se baseia somente
no direito ou na consciência de cada um, mas no direito do outro e no amor ao
próximo. “Dessa maneira, não se pode fechar os olhos para a realidade de tantas
tragédias pessoais decorrentes da bebida e das perspectivas da juventude
brasileira, que está sendo consumida pelo álcool”.
Hernandes
alerta que as igrejas nem precisam olhar para fora para constatar a imprudência
no consumo do álcool, mas atentar para a secularização vista nas congregações
hoje: “Tenho ido a casamentos de crentes a cujas cerimônias seguem-se festas
suntuosas regadas a todo tipo de bebida. O que se passa é que, no fim da festa,
até mesmos cristãos são vistos saindo desses repastos com as pernas bambas”. Se
beber pouco ou muito é motivo de escândalo para um irmão, acrescenta Hernandes,
“então eu devo abster-me de beber”. Princípio, segundo ele, que deve nortear de
resto qualquer atitude do crente.
“Pensar
que o álcool é intricadamente ruim é atribuir mal a Deus, que o fez”, avalia o
pastor episcopal Carlos Moreira, 46 anos, de Recife (PE). “Deus é santo, e em
Salmos 104.15 aprendemos que ele fez o vinho, que alegra o coração do homem,
assim como o azeite que faz reluzir o seu rosto e o pão, que lhe fortalece”.
Defensor da moderação, Moreira conta que certa vez foi flagrado por um membro
de sua paróquia enquanto consumia cerveja em um restaurante. “Com tom
condenatório, aquela pessoa perguntou-me como eu podia estar bebendo”. A
resposta, simples e até bem humorada – “Minha irmã, não quero e nem posso ser
melhor do que Jesus” –, sintetiza a preocupação do pastor com o legalismo. “O
legalista não está satisfeito com os padrões da justiça de Deus. Ele
arrogantemente pensa que pode fazer melhor que o Senhor – legisla ele mesmo,
segundo as suas próprias aspirações religiosas. Assim, proíbe o que Deus
permite e, como resultado, muitas vezes permite que Deus proíbe.”
Carlos
Moreira reconhece a gravidade do problema do alcoolismo e afirma que nenhum
cristão, em sã consciência, deve oferecer motivo de tropeço a um irmão sob o
jugo desta doença. “Contudo”, pondera, “essa lógica de que devemos eliminar
alguma coisa por completo de nossas vidas porque há quem abuse da liberdade de
usá-la não me parece uma atitude compatível com a nossa liberdade cristã, e nem
com o exercício de maturidade que esta envolve”. O pastor lembra que o
reformador Martinho Lutero resumiu esta perversão que força uma religiosidade
vazia com um comentário provocativo: “Ora, os homens são levados ao erro por
conta de mulheres e bebidas. Deveríamos nós abolir as mulheres?”, cita. Para
Moreira, a ética cristã não possibilita que se traga escândalo ao irmão, o que
é um conceito aplicável a situações específicas – “Caso de um crente novo na
fé, por exemplo” –, não uma regra geral: “Considere o caso de Jesus, nosso
padrão de santidade perfeita, que consumia vinho com os seus apóstolos com
regularidade e sem fazer nenhum segredo disso”. A quem estranhar tal afirmação,
o pastor explica que a própria Bíblia registra que o Filho de Deus foi
caluniado pelos fariseus por não seguir o seu rigor ascético, entre outros
aspectos, por se dar ao excesso de bebida e comida. “Não me parece que Jesus se
importasse em escandalizar fariseus”, conclui.
“BÊBADO
DO DIABO”
A
questão da bebida é tratada no primeiro catecismo cristão de que se tem
registro, a Didaquê, do
primeiro século. Ali, fica claro o uso livre do vinho, seja na eucaristia ou no
consumo cotidiano dos irmãos. De fato, havia até mesmo uma instrução
determinando a existência de um reserva da bebida da comunidade para os
profetas visitantes. Clemente de Alexandria (que viveu aproximadamente entre os
anos 150 e 215 da Era Cristã) julgava absolutamente justo ao homem consumir a
bebida para o seu relaxamento e defendeu fortemente a presença obrigatória do
vinho na Ceia do Senhor. O fim do Império Romano, no século 5, fez surgir o
modelo econômico feudal, no qual os mosteiros, abadias e outras estruturas
religiosas passaram a produzir os seus víveres – e o vinho era item
fundamental, não apenas na dieta, mas para as celebrações religiosas. A cerveja
também era produzida e largamente consumida pelos religiosos. Tanto, que a
Igreja relacionou diversos santos à produção do álcool, como São Adriano e São
Armando – padroeiros dos cervejeiros e dos donos de taverna – e São Martinho e
São Vicente, considerados protetores do vinho e dos vinicultores.
A
Reforma Protestante é marcada pelo retorno às Escrituras, mas também pelo
esforço dos reformadores em romper com as tradições católicas o quanto fosse
possível, estabelecendo uma distância não apenas teológica, mas também
cultural. Contudo, a visão dos reformadores quanto ao consumo da bebida não
recebeu novo escrutínio, ao contrário: eles doutrinaram a Igreja a receber a
bebida como uma bênção de Deus e a usufruir dela com moderação, não se deixando
dominar por ela. Lutero consumia vinho e era conhecido como um grande bebedor de
cerveja, produzida por sua esposa, Catharina. Já João Calvino recebia como
parte de seu salário anual da Igreja Reformada suíça sete tonéis de vinho. Até
os principais tratados de fé escritos nesse período – como a Confissão
belga, o Catecistmo de Heidelberg e a
Confissão de Westminster – faziam
clara menção ao uso do vinho.
E também
os puritanos, sempre tão associados a um padrão frugal e conservador de
comportamento, não dispensavam uma caneca. O navio Mayflower, que os trouxe ao
novo mundo, carregava mais cerveja do que água – quase 30 mil da bebida. E, ao
desembarcarem, em Plymouth Rock, terra que no futuro pertenceria aos Estados
Unidos da América, não construíram em primeiro lugar uma vila ou uma capela, e
sim, uma cervejaria. Increase Mather, clérigo renomado, presidente da
Universidade de Harvard e protagonista dos célebres julgamentos relacionados a
bruxaria em Salem, resume o ponto de vista dos puritanos sobre o tema em
seu sermão Ai dos bêbados, de
1673: “A bebida é em si uma criação pura e boa de Deus, e deve ser recebida com
gratidão, mas o abuso de bebida é de Satanás; o vinho é de Deus, mas o bêbado é
do diabo.”
O
movimento metodista nas Ilhas Britânicas marca o início da mudança da visão da
igreja em relação ao consumo do álcool. O célebre evangelista John Wesley, no
século 18, foi um dos primeiros a se insurgir contra os excessos de bebida
entre os crentes, e também pioneiro na articulação de um movimento de proibição
do seu uso. Em seus sermões, Wesley reprovava o uso não-medicinal de bebidas
destiladas, como conhaque e uísque, e dizia que muitos destiladores que vendiam
seus produtos indiscriminadamente não eram nada mais do que “envenenadores e
assassinos amaldiçoados por Deus”. Novamente, o contexto histórico-cultural não
deve ser ignorado. À época, com o advento da Revolução Industrial, as cidades
não ofereciam infraestrutura suficiente para atender às demandas da população
que afluía do campo para trabalhar nas fábricas. Faltava água potável e as
bebidas destiladas e fermentadas eram largamente usadas. O ambiente de miséria,
somado à embriaguez endêmica, resultou em um grave problema social.
O
movimento de temperança surge, em princípio, como reação da Igreja ao sério
problema de saúde pública provocado pelo alcoolismo nos Estados Unidos. A
maioria dos estudiosos concorda que o marco zero foi a publicação, em 1805, de
um folheto de autoria do médico Benjamin Rush tratando dos males do álcool.
Pela primeira vez, foi introduzida a noção de vício potencial inerente ao
consumo de bebidas destiladas e o autor prescreve a abstinência como única
cura. Rush, presbiteriano, foi um dos signatários da Declaração
de Independência americana
e fundador da Sociedade Bíblica da Filadélfia. A relevância do autor explica o
impacto que a sua obra recebeu na sociedade.
O
arcebispo episcopal William Mikler, do Apostolado para as Nações, com sede nos
Estados Unidos e igrejas em todo o mundo, incluindo o Brasil – país que visita
com regularidade –, lembra que este não era um movimento apenas religioso.
“Envolvia uma grande disputa por espaço político e, aos poucos, sob o entulho
do farisaísmo, foi tomando conta da Igreja, chegando ao ponto de banir o vinho
da Ceia do Senhor, o que vai diretamente contra a um mandamento de Cristo.” O
resultado, explica, foi a defesa do proibicionismo como política de Estado, um
dos motivos da Lei Seca – emenda à Constituição americana que proibiu a
venda e o consumo de álcool no país. O tiro acabou saindo pela culatra,
aumentando o consumo no país e estimulando as destilarias clandestinas, a
exploração ilegal da indústria de bebida e o crime organizado.
Para
Mikler, a questão do alcoolismo, naturalmente, merece a atenção da Igreja, mas
o grande erro do movimento de temperança foi construir uma teologia apontando a
bebida como algo inerentemente mau, justificando, assim, a retirada do vinho da
Ceia. “Isto foi uma dupla ofensa: A Deus, que deu o vinho ao homem, e a Jesus,
que escolheu este elemento para a Ceia.” Mais tarde, quando o metodista Thomas
Welsh desenvolveu um processo de tratamento do caldo prensado da uva capaz de
conservar a bebida sem promover a fermentação alcoólica – o chamado mosto –,
deu-se a substituição do vinho na comunhão.
Desde
então, há até gente que defenda a tese de que a bebida consumida por Jesus não
era alcoolica. Rodrigo Silva, funcionário público e pastor da Igreja
Presbiteriana Independente em Rondônia, rechaça essa ideia usando a própria
passagem bíblica que narra o milagre da transformação da água em vinho. “Não
bastasse a incoerência de tal afirmação com o comentário registrado nas
Escrituras, quando alguém ali estranhou receber o ‘bom vinho’ àquela altura da
festa, o vocábulo grego para definir a bebida servida por Cristo – ouinos – é o mesmo usado em todo o Novo
Testamento em referência ao vinho alcoolico comum”. Mesmo assim, ele passa
longe do copo, e tem bons motivos para isso. “Sou filho de pai alcoólatra, e a
bebida destruiu não só seu casamento dele, como minha própria relação com ele.
Por causa desse trauma eu não bebo, mas não recrimino quem o faça.”
LÍCITO
x CONVENIENTE
Associados,
na Palavra de Deus, a uma série de problemas – caso de Noé e Ló, personagens
bíblicos, que cometeram desatinos quando embriagados –, exageros com o álcool
trazem não apenas malefícios espirituais, como a ruína de famílias, episódios
de violência e vidas destruídas. O estigma social do álcool é tão intenso que
muitas igrejas evitam até mesmo o vinho na celebração da Ceia. “Fazemos isso
por consideração àqueles irmãos já enfrentaram ou ainda têm problemas com o
alcoolismo”, explica o pastor Paulo Cesar Brito, líder da Igreja Missionária
Evangélica Maranata, do Rio de Janeiro. Como também é médico, Brito sabe bem
quais são os efeitos do álcool no organismo humano e que basta uma pequena dose
para trazer de volta um vício devastador que, muitas vezes, foi deixado para
trás graças à fé. Por isso mesmo, nas congregações de sua igreja, os pequenos
cálices da comunhão trazem apenas alguns mililitros de suco de uva – o
bastante, no seu entender, para manter o simbolismo e o significado espiritual
do ato.
Mas tal
posicionamento já foi (e continua sendo) alvo de polêmica. O teólogo reformado
Keith A.Mathison é autor de trabalhos respeitados sobre o assunto. Ele acredita
que a retirada do vinho da Santa Ceia é uma questão que desafia qualquer
principio ordenador que se use na Igreja protestante. Em um de seus artigos
mais recentes, Mathinson lembra que a noção do princípio regulador do culto–
segundo o qual, no culto de Deus, o que não é ordenado é proibido – é ignorado
por completo “quando o assunto é a mudança de um elemento na celebração do
mistério da Ceia do Senhor”.
As
igrejas reformadas subscrevem formalmente este princípio. Mathison lembra
a história de Nadabe e Abiú, narrada em Levítico 10, para ilustrá-lo.
“Deus emitiu comandos específicos sobre como devia ser adorado. Nadabe e Abiú
decidiram que seria aceitável mudar algo. Ao fogo estranho, Deus respondeu com
destruição”. Para o autor, Jesus instituiu a Ceia com pão e vinho, e não há
autorização para mudar isso, assim como não se pode suprimir a água no
sacramento do batismo.
O pastor
presbiteriano e chanceler do Instituto Mackenzie, Augusto Nicodemos Lopes,
contemporiza: “Não creio que princípio regulador seja tão abrangente a ponto de
exigir que seus defensores tenham que usar o vinho. Ele trata de princípios que
regem o culto público, e o uso de vinho ou suco de uva é uma questão de
circunstância, e não de elemento de culto ou de princípios.” Nicodemos lembra
que, mesmo no Brasil, não existe uma unanimidade entre os reformados sobre o
uso do vinho ou de suco na Ceia. “Fica a critério das igrejas locais. Fui
pastor da Igreja Suíça de São Paulo onde se usa vinho. E pastoreei igrejas
presbiterianas onde se usava ou um ou outro. Isso vai muito da mentalidade do
pastor e do Conselho.”
A
predominância da visão abstencionista, nas denominações históricas, não é
manifestada oficialmente. “O que não acontece entre os pentecostais,
neopentecostais e grupos afiliados ou oriundos destes”, observa o advogado
Thiago Lima Barros, pesquisador da história da Igreja : “Esses grupos são os
únicos que elevaram tais restrições ao status de doutrina; se não na teoria,
pelo menos na prática diária”. Para ele, a importância do movimento pentecostal
e sua influência sobre toda a Igreja Evangélica brasileira explica muito a posição
predominante em relação ao álcool no Brasil – “E não apenas neste aspecto, mas
toda uma tradição de usos e costumes”, completa. Diácono da Igreja Nova
Aliança, Barros lembra que, em 1946, na 22ª reunião da Convenção Geral das
Assembleias de Deus, realizada em Santo André (SP), deliberou-se oficialmente
sobre vestuário, aspectos da aparência e, claro, abstenção de bebidas
alcoolicas. “Tais posições só encontraram algum relaxamento em 1999, por
ocasião do 5º Encontro de Líderes da denominação, onde aquelas exigências foram
contextualizadas, ainda que sem se abrir mão da importância dos usos e
costumes como prática saudável e de identidade da igreja.”
O
diácono oferece um posicionamento conciliatório: “Nenhum cristão realmente
nascido de novo em Cristo vai defender libertinagem ou embriaguez, que são
posturas de evidente mundanismo. Precisamos, de fato, ser santos como o nosso
Senhor o é, e não jogar o bebê fora junto com a água do banho”. Pastor da
Assembleia de Deus, a igreja que foi a principal responsável por essa
influência, Ciro Sanches Zibordi cita o texto de Efésios 5.18 para enfatizar a
importância de o crente ser dominado pelo Espírito Santo. Ele justifica a
abordagem mais conservadora da denominação com um argumento baseado na história
e na realidade social da expansão assembleiana. “Como se sabe, a igreja
Assembleia de Deus sempre atuou entre as pessoas mais carentes, em favelas e
morros, por exemplo, onde muitos alcoolatras são transformados radicalmente
pelo poder do Evangelho. Não faz sentido dizer a pessoas que foram libertas de
maneira sobrenatural de um vício que elas podem continuar usando com moderação
a substância que abandonaram.”
Autor de
títulos como Erros que os pregadores devem
evitar eEvangelhos que Paulo jamais
pregaria (ambos editados pela CPAD), o pastor, que
atua na Assembleia de Deus do Ministério de Cordovil, no Rio de Janeiro, afirma
que todo patrulhamento deve ser evitado: “Ninguém tem o direito de interferir
na individualidade e na privacidade das pessoas salvas em Cristo”. De fato,
mesmo o apóstolo Paulo, tão radical nas regras de conduta que prescreveu à
Igreja primitiva em suas epístolas, mostrou-se transigente em relação à bebida.
Ele chegou a recomendar a seu filho na fé e colaborador ministerial Timóteo que
usasse “um pouco de vinho” para melhorar suas enfermidades digestivas.
“A
Palavra de Deus é um livro de princípios, e isso deve ser levado em
consideração quando tratamos de assuntos tão delicados como o consumo de
bebidas alcoolicas”, continua o pastor Zibordi. Por outro lado, pondera, um
líder cristão consciente pode e deve pregar contra o uso da bebida e seus
efeitos. “Tudo o que um alcoolatra precisa é de uma transformação radical, ao
invés de uma orientação dúbia. Logo, a despeito de a Bíblia não condenar a bebida
alcoólica pela força de mandamento, ela mostra que nem tudo o que lícito é
conveniente para o cristão, conforme I Coríntios 6.12”.
Entre
o copo e a fé
Ao longo
da história, a visão do povo de Deus acerca do vinho e outras bebidas
alcoolicas tem variado muito:
Antigo
Israel
O vinho
é parte central da história, da cultura e da religiosidade do povo hebreu.
Presença obrigatória nas celebrações, a bebida é citada no Antigo Testamento
como sinônimo de alegria e fartura. Por outro lado, a embriaguez sempre é
condenada e aparece como causadora de graves delitos (lascívia, incesto,
homicídio, traição)
Novo
Testamento
Cristo
transforma água em vinho e inclui a bebida em sua Ceia com os discípulos.
Paulo, em suas mensagens às igrejas da época, adverte que bebedores contumazes
não herdarão o Reino dos céus – contudo, recomenda que Timóteo use um pouco da
bebida por causa de suas enfermidades estomacais e que presbíteros e bispos não
sejam dados “a muito vinho”
Primeiros
séculos da Igreja
O vinho
é considerado uma dádiva de Deus. A posição predominante é a da temperança –
uma das quatro virtudes cardeais do cristão – no consumo, já que bebida pode
ser fonte tanto de alegria como do mal. Os catecismos escritos pelos pais da
Igreja vão na mesma direção e consideram o elemento essencial à Ceia do Senhor
Idade
Média
Por
conta da necessidade nas celebrações religiosas e das características do
sistema econômico feudal, a Igreja, através de seus mosteiros e abadias, se
torna a grande referência na fabricação de vinho e cerveja. As condições
climáticas da Europa impulsionam o consumo do álcool e os cristãos seguem um
padrão pródigo para com a bebida. Diversos santos são associados à vinicultura
e às artes da cervejaria e os monges tornam-se mestres na produção e aperfeiçoamento
da fabricação. Por outro lado, o excesso no consumo é comparado à gula, um dos
sete pecados capitais
Reforma
Protestante
Reformadores
como Calvino e Lutero consumiam vinho e cerveja. A posição majoritária da
Igreja continua sendo a do uso de álcool de forma responsável e moderada
Movimentos
cristãos dos séculos 17 e 18
A bebida
fermentada é parte da celebração cristã e motivo de júbilo para os puritanos.
Tanto, que ao chegaram aos Estados Unidos, eles tratam de construir
cervejarias. Já o metodismo marca o primeiro grande movimento pela abstinência,
com John Wesley, tendo em vista as bebidas destiladas. Os dois grupos, no
geral, consideram lícito o consumo moderado de vinho e de cerveja
Movimento
da temperança (séculos 19 e 20)
Apesar
do nome, foi uma iniciativa proibicionista. Seus defensores afirmavam que o
álcool era um mal em si, e portanto deveria ser evitado pelo cristão e não
estar associado à Ceia do Senhor – posição conflitante com a história da Igreja
até ali. Com força política, os temperantes influenciam na aprovação da Lei
Seca nos EUA. Pela primeira vez, a visão abstencionista supera a moderacionista
(ou temperante) entre os protestantes do continente americano
Hoje
A defesa
da abstinência ao álcool predomina entre os evangélicos dos EUA e da América
Latina, sobretudo entre pentecostais, mas também com forte apelo entre cristãos
reformados e tradicionais. A abstenção é defendida como virtude, inclusive com
vistas ao bom testemunho cristão perante incrédulos, por conta do estigma
social da bebida – mas também na família da fé, sobretudo em relação a pessoas
mais fracas na fé ou oriundas do alcoolismo. Na Europa, contudo, os cristãos
consomem bebida – sobretudo vinho e cerveja – regularmente, o que reforça a
tese da influência cultural no hábito
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