“Vamos correr a sacolinha. Quem tem, põe. Quem não tem, tira”. Este era o bordão usado por Tim
Tones, um dos mais controversos personagens de Chico Anysio, satirizando
pregadores midiáticos em suas mirabolantes performances para levantar ofertas.
Apesar de tratar-se de uma sátira, este bordão expressa a crença comum de que
ninguém pode dar o que não tem.
Como poderíamos dar o que jamais recebemos? Um homem que não recebeu
amor do pai, como poderá oferecer este amor ao seu filho? Uma mulher cujos pais
eram incapazes de demonstrar amor recíproco, como saberá demonstrar amor ao seu
marido? Como reproduzir aquilo de que não temos qualquer referência?
A lógica dos relacionamentos humanos se baseia nesta premissa: Só damos
o que houvermos recebido. Ninguém cobre de nós mais do que a vida nos deu. A
graça, porém, rompe com esta lógica, fazendo-nos ir além de nossos recursos
(fique despreocupado que este artigo não é sobre ofertas).
Foi esta lógica subversiva que guiou os cristãos primitivos. Veja o
exemplo relatado por Paulo em sua segunda epístola aos Coríntios:
“Também, irmãos, vos
fazemos conhecer a graça de Deus que foi dada às igrejas da Macedônia; como, em muita prova de tribulação,
a abundância do seu gozo e sua profunda pobreza abundaram em riquezas da sua
generosidade. Porque, dou-lhes
testemunho de que, segundo as suas posses, e ainda acima das suas posses, deram
voluntariamente, pedindo-nos, com
muito encarecimento, o privilégio de participarem deste serviço a favor dos
santos; e não somente fizeram como nós esperávamos, mas primeiramente a si
mesmos se deram ao Senhor, e a nós pela vontade de Deus.” 2 Coríntios 8:1-5
Apesar de sua condição econômica precária, a igreja macedônia fez
questão de recolher e enviar suas ofertas para a igreja em Jerusalém, que vivia
um momento crítico, beirando à miséria. Paulo até que tentou poupá-los, porém,
nada conseguia dissuadi-los de estender as mãos a irmãos que sequer conheciam.
Paulo se refere a esta atitude altruísta como manifestação legítima da graça de
Deus, fazendo com que dessem “acima de suas posses”, e ainda dessem “a si
mesmos”.
Seria este caso uma exceção, ou o padrão pelo qual deveríamos pautar
nossas atitudes? Seria justo requerer de nós mais do que podemos dar?
Como dar o que não se tem? Como oferecer o que jamais se recebeu?
Somente a graça de Deus nos habilita a proezas desta natureza.
Haveria alguma passagem bíblica que deixasse clara a disposição do
Senhor em requerer de nós tal postura?
Na conhecida parábola dos talentos, Jesus conta que um homem distribuiu
talentos aos seus servos. Ao retornar de viagem, chamou-os para a prestação de
contas. O que ganhou cinco talentos, negociou e multiplicou-os por dois. O que
ganhou dois, idem. Porém, o que ganhou apenas um, preferiu enterrá-lo para não
correr o risco de perder o único que tinha. Suas desculpas não foram aceitas.
Seu senhor esperava que ele fizesse como os demais, multiplicando seu único
talento. Por tê-lo enterrado, perdeu-o para o que ganhara mais.
Repare na resposta dada
pelo seu senhor:
“Respondendo, porém, o
seu senhor, disse-lhe: Mau e negligente servo; sabias que ceifo onde não semeei
e ajunto onde não espalhei?”Mateus
25:26
Se este senhor da parábola é uma representação do próprio Deus, podemos
concluir que teremos que dar contas até do que não recebemos. Deus ceifa onde
não semeou.
Ainda que isso nos soe estranho, e até injusto da parte de Deus, temos
que entender o teor subversivo por trás desta parábola. Trata-se da resposta
que damos à maneira como a vida nos tem tratado.
O fato de termos recebido pouco ou menos do que achamos que merecemos
não nos isenta da responsabilidade. Mesmo quando não somos amados como
gostaríamos de ser. Ou quando o nosso trabalho não é devidamente valorizado. Ou
ainda, quando sequer recebemos a mínima atenção ou tratamento digno.
Não somos aquilo que a vida nos faz, e sim aquilo que fazemos com o que
a vida nos faz. É a resposta que dermos à vida que fará toda a diferença.
Somente a graça nos habilita a responder adequadamente às demandas
existenciais.
A graça capacita vítimas a não repassarem esta condição a outros. Ela
nos concede o dom da empatia. Qualquer ser humano pode nutrir algum tipo de
simpatia com o seu semelhante, porém, somente a graça produz empatia. A
simpatia consiste na capacidade de entender os sentimentos alheios, sejam
positivos ou negativos. A simpatia nos faz olhar com bons olhos o que o outro
está vivendo, ou a maneira como vive. Mas a empatia vai muito além. Ela nos faz
sentir na pele o que o outro sente. A simpatia nos aproxima, a empatia nos faz
comprometer-nos. A simpatia nos impele a estender as mãos, a empatia nos leva a
abraçar. A simpatia nos faz desejar o melhor ao nosso semelhante, a empatia nos
faz lutar para que este melhor o alcance.
O inverso da simpatia é a antipatia. O inverso da empatia é a apatia. Pior
que um sentimento odioso pelo nosso próximo é a total indiferença. Quem odeia,
pelo menos, se importa. Já o indiferente não perde tempo nem energia pensando
no outro. Ele simplesmente o ignora. A antipatia nos faz distanciar, enquanto a
apatia nos faz dar as costas.
A empatia equivale à compaixão. Compadecer-se é “padecer com”, sofrer
junto.
Foi este o sentimento que Deus ordenou que Seu povo nutrisse para com os
estrangeiros que peregrinassem em suas terras.
Confira:
“O estrangeiro não afligirás, nem o oprimirás; pois estrangeiros fostes
na terra do Egito.” Êxodo
22:21
“E quando o estrangeiro
peregrinar convosco na vossa terra, não o oprimireis. Como um natural
entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo,
pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o SENHOR vosso Deus.” Levítico 19:33-34
“Por isso amareis o
estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.”Deuteronômio 10:19
De acordo com estas passagens, os israelitas não deveriam afligir, nem
oprimir, mas amar o imigrante, uma vez que eles mesmos haviam estado nesta
condição no Egito.
Embora lá eles tenham sido escravos, não deveriam escravizar quem
peregrinasse em suas terras. O fato de terem sido estrangeiros no Egito deveria
levá-los a compadecer-se de quem estivesse na mesma condição. Quem um dia foi
vítima não tem o direito de vitimizar.
Caso não pautemos nossa caminhada por este princípio, corremos o risco
de fazer da vida uma espécie de forra. Quem hoje é oprimido, não vê a hora de
dar a volta por cima, tornando-se no opressor. Infelizmente, este tem sido o
espírito encontrado em muitas pregações e canções em nossas igrejas. Pregadores
vociferam: Quem hoje te humilha, um dia terá que te aplaudir! Aonde foram parar
o perdão, a compaixão, a humildade, virtudes cardeais do cristianismo?
Empatia era o que Deus exigia que Seu povo tivesse com os imigrantes.
Não apenas simpatia, muito menos apatia ou antipatia, mas empatia. Não bastaria
que eles não os afligissem (para isso bastava apatia), nem que os oprimisse
(simpatia); eles teriam que amá-los (empatia).
Quem, de fato, teve uma experiência radical com a graça jamais poderia
viver como se fosse o centro do universo, ignorando quem está ao seu redor. Os
pais devem amar aos filhos radicalmente, ainda que não tenham sido igualmente
amados por seus próprios pais. Os filhos devem ser apaixonados por seus pais,
ainda que estes não retribuam seu amor.
Outro exemplo desta lógica subversiva pode ser extraído diretamente da
galeria dos heróis da fé. De todas as proezas relatadas no capítulo 11 de
Hebreus, o que mais me chama a atenção é a frase “da fraqueza tiraram forças”.
Confira o contexto:
“Os quais pela fé
venceram reinos, praticaram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as bocas
dos leões, Apagaram
a força do fogo, escaparam do fio da espada, da fraqueza tiraram forças, na batalha se esforçaram, puseram em fuga os
exércitos dos estranhos.”
Hebreus 11:33-34
Qual era o segredo destes heróis? Como tirar de si algo que não tem?
Lembre-se que o poder de Deus se aperfeiçoa em nossa fraqueza. Em outras
palavras, nossas debilidades oferecem o encaixe perfeito para o poder de Deus.
Temos que admitir nossa fragilidade para que nossas lacunas sejam devidamente
preenchidas pelos inesgotáveis recursos da graça. Será esta graça que
capacitará pais a amarem seus filhos, ainda que tenham sido abandonados em sua
infância. Esta mesma graça romperá com o ciclo de abuso numa família. Quem
sofreu, não imporá a outro o mesmo martírio. Encontraremos força em nossa
fraqueza, recursos em nossa miséria, consolo para outros em nossa própria
experiência.
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