Esse efeito-rebote, somado à procura cada vez maior da população por curas e milagres que resolvam rapidamente seus problemas, tem levado esses católicos a migrar para outras denominações ou encorpar o grupo dos que fazem contato com o divino sem o intermédio de uma instituição. “A Igreja prefere que as pessoas que buscam soluções imediatas por meio de milagres não permaneçam nela”, diz o teólogo jesuíta João Batista Libanio. Diminui-se o número de católicos, mas, por outro lado, aumenta-se o dos praticantes conscientes.
Párocos têm relatado que seus templos estão existindo à imagem e semelhança de supermercados. Percebem que é cada vez maior o número de fiéis que procuram a igreja ocasionalmente, em busca de serviços religiosos como casamentos, missas de sétimo dia, batizados e bênçãos de lugares e objetos. Tratado como produto, o casamento, só para citar um dos “bens” católicos, se torna um evento alheio à doutrina. “Há casais que trazem o CD da novela que faz sucesso para tocar na cerimônia. Se você se nega, alguns inconformados batem boca com você, viram as costas e procuram quem o faça”, conta o padre José João da Silva, da paróquia São José Operário, em Itaquera, na zona leste da cidade de São Paulo. “Vivemos uma igreja fast-food.”
Nessa lógica de mercado, missa de sétimo dia tem se transformado em uma grande assembléia de gente que só foi ao templo por conta da ocasião e não está preocupada com o significado do ritual. Quanto aos batizados, explica o cônego Celso Pedro da Silva, da paróquia Santa Rita de Cássia, do Pari, zona norte de São Paulo, a Igreja supõe que quem quer que o filho se insira nela antes do uso da razão o faz porque dela faz parte e aceita suas regras. “O mesmo vale para a primeira comunhão, mas muitos pais não têm vínculos efetivos, nem foram casados na Igreja”, diz ele. “Acredito que uma dificuldade do catolicismo seja saber que o povo católico não é evangelizado e, mesmo assim, se comportar na prática como se ele fosse”, diz o cônego. O padre João Carlos Almeida, teólogo e diretor da Faculdade Dehoniana (SP), foi vigário paroquial no Santuário São Judas Tadeu, na capital paulista, por três anos. E conta que passava quase o dia todo atendendo a confissões e abençoando automóveis. “Muita gente trazia seu carro recém-comprado para ser benzido e ia embora. Poucos rezavam ou participavam de uma missa”, lembra. Com a oferta religiosa na vitrine, católicos assistem a seus fiéis se afastando dos vínculos espirituais.
Está lá no “Novo Mapa das Religiões”. Entre as 25 denominações pesquisadas, apenas no catolicismo a mulher não constitui a maioria dos adeptos (leia quadro à pág. 70). Entre evangélicos, espíritas, religiões de matriz africana, oriental e asiática, elas superam os fiéis do sexo masculino. As católicas, porém, são cerca de 67,9%, enquanto os homens são 68,9%. Neri, o organizador do estudo da FGV, atribui o resultado, entre outras interpretações, ao fato de as alterações no estilo de vida feminino ocorridas nos últimos 30 anos não terem encontrado eco na doutrina católica, menos afeita a mudanças. De fato, seguem engessadas na Igreja, só para citar três tabus, as questões sobre os métodos contraceptivos, o divórcio e o aborto.
De acordo com o teólogo Jorge Cláudio Ribeiro, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), o catolicismo não gosta da mulher. “Ao que parece, elas, mal-amadas que são pela Igreja, estão se autorizando a não gostar da religião, a reagir”, diz ele. Seu colega de PUC, o padre e psicólogo João Edénio dos Reis Valle, afirma não ter dúvida de que a questão de gênero pesa na constante diminuição do número de católicos no País. “Ela pesa em especial nas mulheres de classes mais instruídas e em melhor posição socioeconômica”, afirma. “Essas não só percebem como discutem e não aceitam as posições da Igreja em relação a uma série de questões que as afetam.” E conclui discorrendo sobre a não participação clerical feminina. “Elas reivindicam um papel novo e ativo na vida da instituição.”
Em 2002, um grupo de mais de 500 pessoas levou à Justiça americana denúncias de abusos sexuais cometidos por sacerdotes e membros da arquidiocese de Boston, nos Estados Unidos. Esse escândalo foi a chama que fez arder uma fogueira de denúncias mundo afora, inclusive no Brasil. Na Irlanda, só para dar a dimensão do problema, a pedofilia acobertada por seis décadas pela hierarquia católica local foi tachada pela Anistia Internacional como o maior crime contra os direitos humanos já registrado na história daquele país. Para uma instituição que tem como bandeira a verdade sobre o mundo, ser atingida por problemas éticos que constituem crime representou um duro golpe. E a mazela dos escândalos de abuso sexual envolvendo crianças afastou muitos simpatizantes do catolicismo. É o que defende o cientista da religião Sung. “O militante não terá sua fé abalada. Mas os que se sentiam católicos por uma afinidade de infância ou inspirados em alguma figura pública podem ter deixado de ser por causa desses fatos.”
Para piorar, a Igreja não foi hábil na cicatrização da ferida. “Ela trabalhou a questão na base do segredo e do corporativismo. A lógica interna de uma instituição que se protege e não ventila o problema levou a ampliar o fenômeno, tornando-o uma sensação nos meios de comunicação”, afirma a socióloga da religião Brenda Carranza, da PUC de Campinas. Só há pouco tempo Bento XVI decidiu ordenar que os bispos abrissem normativas internas contra padres suspeitos de ser pedófilos e informassem as autoridades civis. Em setembro, ao visitar sua terra natal, a Alemanha, que perdeu 180 mil adeptos no ano passado por conta dos abusos sexuais praticados por sacerdotes, disse: “Posso compreender que, em vista de tais informações, alguém diga: ‘Esta já não é a minha Igreja.’”
Há comunidades dentro do catolicismo que lançam mão de tecnologias para se relacionar com os jovens. Elas têm escancarado à Igreja, segundo a socióloga da religião Brenda, que não é mais possível seguir com a ideia de que o fiel se encontra na paróquia. Estabelecida em sua maioria em grandes centros urbanos, essa turma mais nova sofre com o impacto da mobilidade, do crescimento acelerado, do consumo exacerbado, enfim, elementos que a fazem estabelecer relação com a crença muitas vezes a distância. Para a professora da PUC, a noção de participação das novas gerações urbanas é pautada pela afinidade. O jovem busca uma instituição quando se identifica com ela, independentemente da proximidade física. “Mas a noção da Igreja de paróquia é territorial”, diz Brenda. Para o padre Libânio, enxergar as demandas da população e repensar até onde a religião pode ir na direção delas é o caminho para o futuro do catolicismo. “Os fiéis querem aquilo que os satisfaz e têm buscado muito o mundo virtual”, diz ele. “A Igreja Católica tem de repensar a sua estrutura paroquial.”
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