Embora
concentrada nas mãos de poucas pessoas, algumas envolvidas diretamente com
política, a mídia brasileira é muito semelhante à americana. Por isto, a
publicação de CULTURA DO MEDO, de Barry
Glassner , foi realmente importante.
O livro
prefaciado por Paulo Sérgio Pinheiro é fartamente documentado. Ao fim de cada
capítulo o autor indica aos leitores quais foram as fontes consultadas, de
maneira que suas conclusões não podem ser consideradas arbitrárias.
Em cada um dos
capítulos Barry Glassner se detêm sobre um tema diferente, de maneira a dar um
painel bastante completo e variado de todos os principais instrumentos
empregados pela mídia americana para amedrontar a população. Consciente ou
inconscientemente os jornalistas americanos desviam constantemente a atenção
dos leitores e espectadores para assuntos menos relevantes, desviando sua
atenção dos problemas reais que podem e devem ser atacados para melhorar as
condições de vida da população.
No primeiro
capítulo o autor trata dos PERIGOS DUVIDOSOS NO TRÂNSITO E NAS UNIVERSIDADES. O
diagnóstico do autor impressionante: “Relativamente a quase todos os temores americanos
atuais, em vez de se enfrentar os problemas sociais perturbadores, a discussão
publica concentra-se em indivíduos perturbados. Em vez de políticas públicas
insanas, os motoristas dementes ocuparam o centro do palco na cobertura
relativa ao trânsito. Quando se faia alguma referência aos problemas sérios
enfrentados pelos motoristas, esses eram prontamente postos de lado,
transformando-se em um falatório sobre motoristas violentos.”
No Brasil já nos acostumamos às narrativas
matutinas dos acidentes de trânsito que ocorreram de madrugada ou no começo da
manhã. Cada telejornal tem seu próprio helicóptero para mostrar o caos urbano
criado pelos acidentes. Quando o acidente tem múltiplas vítimas, os jornais da
tarde e da noite repassam as mesmas coberturas. Na grande maioria das vezes
ficamos sabendo que os responsáveis foram motoristas que estavam embriagados, dormiram ao volante ou
violaram leis de trânsito.
Me parece óbvio que se os motoristas estavam
embriagados é porque puderam comprar bebidas livremente, inclusive na estrada.
Entretanto, nunca vi um só jornalista brasileiro
perguntar ao dono de uma grande cervejaria se ele apoiaria a proibição de venda
de bebidas alcoólicas em postos de gasolina. E os donos de redes de
distribuição de combustível e bebidas em postos, o que tem a dizer sobre o
assunto? Nada enquanto não forem questionados pela mídia.
O silencio da mídia em relação a esta questão pode
ser creditada à cumplicidade. A mídia não toca no assunto porque ele não
interessa aos políticos, que por sua vez não o consideram importante porque
recebem dinheiro dos empresários do setor para permitir que os negócios possam
fluir. Ao fluir, os negócios rendem gordas propaganda que são abocanhadas pela
própria mídia. E assim a tragédia social se perpetua em benefício de alguns.
Porque os motoristas brasileiros dormem ao volante?
Porque gostam de dirigir com sono ou porque são obrigados a realizar jornadas
de trabalho estafantes em razão de ganharem pouco? Os donos de transportadores
devem ter alguma coisa a dizer sobre o assunto, mas nunca foram questionados ao
vivo por qualquer rede de televisão ou jornal de circulação estadual ou
nacional.
Seguindo o exemplo do jornalismo americano, o
jornalismo brasileiro parece que prefere concentrar-se na tragédia e culpar o
motorista. E todo dia um novo motorista culpado se torna peça chave nos jornais
matutinos. É realmente lamentável.
Barry Glassner afirma que os “... pseudo-superegos
representam novas oportunidades de evitar problemas que não queremos enfrentar,
tais como ruas superlotadas e superabundância de armas, assim como aqueles que
já cansamos de confrontar. Um exemplo do ultimo caso envolve o ato de dirigir
embriagado, comportamento que causa cerca de 85 vezes mais mortes do que
ocorrências associadas à fúria no trânsito (cerca de 17 mil contra 200).”
Há algum tempo a imprensa brasileira notabilizou um
caso de fúria no trânsito ocorrida na cidade São Paulo envolvendo um motorista
que, se não em engano, atropelou um motoqueiro e fugiu causando estragos até
ser detido pela polícia. A cobertura desmedida dado a este evento isolado
demonstra como nossos escribas estão sempre à procura de imitar seus colegas
norte-americanos.
No segundo capítulo, o autor se concentra sobre a
CRIMINALIDADE NO NOTICIÁRIO. Logo no princípio do capítulo ele adverte que
“...temos que ter preocupações com a criminalidade, o consumo de drogas, o
abuso de crianças e outras calamidades. A questão é: como nos atrapalhamos
tanto sobre a verdadeira natureza e extensão desses problemas?”
Há pelo menos dez anos o jornalismo “pinga sangue” ou “risca faca” tomou conta do horário nobre de algumas emissoras de
televisão. Alguns
apresentadores de televisão se notabilizaram explorando a tragédia e
alimentando o medo da população. Cenas de perseguições em favelas, tiroteios em
praça pública, cidadãos alvejados e algemados se tornaram tão comuns que a
população é levada a crer que existe um bandido atrás de cada poste. O problema
é que nem todos os bairros têm postes de luz e muitos dos que têm estão no
escuro por causa de luminárias quebradas ou apagadas. Mas todos os dias a
televisão repassa a mesma ladainha de desgraças e nenhum jornalista pergunta: o
que pode ser feito para melhorar as condições de vida da população na
periferia?
Barry Glassner explica esta falta de curiosidade
jornalística. Segundo ele “...os jornalistas se vangloriam de ser desconfiados
em relação às informações que recebem. O jornalista adirão “usa seu ceticismo
como um cavaleiro medieval usava sua armadura”, disse Shelby Coffey, diretora
da ABC News e ex-editora do Los Angeles Times. No entanto, quando se trata de
uma grande história de crime, um jornalista se comporta como o garoto mais
certinho do colegial para quem a garota mais popular da escola pediu ajuda em
seu projeto de ciências. Grato pela oportunidade, ele não se preocupa em fazer
muitas perguntas.”
Curiosamente, muitos jornalistas brasileiros também
não tem o hábito de perguntar. E quando perguntam, quase sempre desviam o foco
do problema real concentrando-se no efeito.
Como os americanos, nós brasileiros também tivemos
nossos padres pedófilos. A cobertura
dada pela mídia brasileira a questão foi muito similar à americana, cujos
desdobramentos podíamos até ver concomitantemente em nossos jornais noturnos. “O ensaísta político Walter Russel Mead
mostrou que o enfoque da mídia causou um desserviço mais sutil. Ao fazer
reportagens sobre padres pervertidos, os jornalistas acreditam que estão
suscitando uma questão mais ampla sobre o colapso moral de uma das instituições
espirituais mais antigas e influentes da humanidade. No entanto, como Mead
assinala, a atenção obsessiva dedicada aos padres pedófilos obscurece problemas
mais graves existentes na Igreja. Em particular, ele cita a corrupção em
partidos políticos europeus apoiados pela Igreja...”
Durante toda a cobertura feita sobre a crise do
“valerioduto” nenhum telejornal brasileiro fez a menor menção sobre as ligações
do PT com a Igreja Católica. Entretanto, as ligações entre do partido de Lula e
a Igreja são históricas. O ex-Presidente da Câmara petista envolvido no
“valerioduto” saiu de uma Comunidade Eclesial de Base. Após ser eleito, o
próprio Lula agradeceu pessoalmente aos votos conseguidos no púlpito aos bispos
reunidos no interior de São Paulo. Até que ponto a corrupção do PT tem alguma
relação com a corrupção na Igreja Católica no Brasil? Esta pergunta jamais foi
feita, certamente porque no Brasil questionar a Igreja é tabu. Mas porque
diabos é tabu? Então não vivemos num Estado laico em que os cidadãos têm liberdade
de consciência e a imprensa é livre?
O livro de Barry Glassner tem nove capítulos, que
tratam desde juventude em risco e mãos monstruosas até doenças metafóricas e
acidentes aéreos. Negros e tráfico de drogas também foram abordados.
Ao tratar do problema das drogas, por exemplo, o
cientista social alerta para o fato de que o uso de drogas legais é socialmente
mais relevante que o tráfico de entorpecentes. Segundo ele mais “...americanos
usam drogas lícitas por razões não-médicas do que usam cocaína ou heroína;
centenas de milhões de indiciamentos são usados de modo ilícito todos os anos.
Mais da metade das pessoas que morrem por problemas médicos associados a drogas
ou buscam tratamento para esses problemas estão consumindo medicamentos vendidos
com receita. A própria American Medical Association estima que um entre 20
médicos seja completamente negligente na prescrição de medicamentos, e, de
acordo com a Drug Enforcement Agency (DEA), no mínimo 15 mil médicos vendem
receitas ilegais. No entanto, menos de 1% do orçamento relativo ao combate às
drogas destina-se ao controle do uso abusivo de medicamentos vendidos com
receita.”
No Brasil o problema também existe, mas pouco ou
nenhum interesse desperta na mídia. O uso de “rebites” por motoristas de caminhão
é notório. Mesmo assim, nenhum laboratório que fabrica os medicamentos
vulgarmente denominados “rebites” é encurralado pelos jornalistas. Em geral os
noticiários lamentam a destruição da carga, os transtornos na auto-estrada e a
morte do cidadão que dormiu ao volante.
Conheci um caminhoneiro que sofreu danos
neurológicos sérios e incuráveis em razão de ter abusado de “rebites” para
poder sustentar sua família. Nenhum jornalista se interessou por sua estranha
doença que o obrigava a andar com um bilhete no bolso contendo nome, endereço e
telefone. Ele apagava em qualquer lugar e às vezes permanecia desacordado por
dois ou três dias. Acabou afastado do trabalho porque estava incapacitado para
dirigir. Encontrei-o num Shopping de Osasco no final de 2004, estava
bastante chateado porque não o benefício previdenciário não lhe permitia pagar
os estudos dos filhos. Hoje seus filhos são órfãos porque ele morreu aos
cinqüenta e poucos anos de idade
A venda de medicação vencida, o desperdício de
estoques de medicamentos públicos e a comercialização de remédio pirata tem
espaço garantido nos telejornais. O abuso de prescrição ou a venda de receitas
por médicos parecem não estimular indagação jornalística. Vez por outra um caso
de automedicação chama a atenção. A venda indiscriminada de medicamentos parece
não interessar a ninguém. O silêncio da mídia certamente pode ser creditado à
cota de propaganda que as redes de farmácia e os laboratórios farmacêuticos
atribuem aos canais de televisão. Quanto dinheiro está envolvido nisto? Nenhum
jornalista sabe e se sabe não está disposto a relevar a informação.
A questão da venda indiscriminada de remédios e
receitas parece não interessar aos jornalistas. Então deveriam interessar os
políticos, certo?
Errado! Barry Glassner é enfático ao frisar que
“...a dependência dos políticos em relação à indústria farmacêutica para o
levantamento de fundos para campanhas eleitorais e a dependência da imprensa em
relação à mesma indústria para receitas publicitárias têm algo a ver com aquelas
formas de consumo abusivo que eles deploram.” E no Brasil, quanto dinheiro os
laboratórios e redes de farmácias dão aos políticos? Quem sabe um dia se faça
uma CPI do “remedioduto”, antes disto o assunto continuará um mistério
tremendo.
Adquiri uma edição de 2003 da obra resenhada num
sebo, por isto não sei dizer quanto custa o livro novo. Entretanto, qualquer
que seja o preço do mesmo seu valor é inestimável. A obra merece ser lida por
jornalistas e, principalmente, por leitores. Afinal, mais do que os jornalistas
os leitores são vítimas desta cultura do medo que também está sendo imposta aos
brasileiros pela mídia em cumplicidade com os políticos.
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