A horrível tragédia de Oslo pede, em primeiro lugar, respeito e oração pelas vítimas, depois, uma reflexão sobre as medidas de monitoramento que também sociedades, como aquela escandinava, que mantém seu caráter “aberto”, hoje não podem deixar de adotar em face das numerosas e múltiplas formas de terrorismo. Entre essas medidas, no entanto, não pode e não deve haver uma estigmatização dos “fundamentalistas cristãos”, pintados como criminosos e terroristas potenciais. É realmente lamentável que a polícia norueguesa, imediatamente abordada pela mídia de todo o mundo, tenha apresentado inicialmente o terrorista Anders Behring Breivik como um cristão fundamentalista, e que na Itália alguns meios de comunicação designaram mesmo — falsamente — como católico.
O incidente mostra simplesmente como hoje “fundamentalista” é uma palavra usada de maneira ampla e imprecisa para designar qualquer pessoa com idéias extremistas ou genericamente “de direita”, e uma referência, mesmo que vaga, ao cristianismo. Daí surge facilmente o fenômeno social da “culpabilidade por associação”, pela qual qualquer cristão que seja, por exemplo, contra o aborto ou o reconhecimento das uniões homossexuais se torna um fundamentalista e, uma vez que o atentado de Oslo foi atribuído a um adepto do "fundamentalismo", até mesmo um terrorista em potencial. Apenas alguns dias antes do atentado de Oslo, o Observatório sobre a Intolerância e Discriminação contra os Cristãos de Viena tinha enviado aos responsáveis pelo projeto RELIGARE, uma pesquisa sobre a Europa multi-religiosa financiada pela Comissão Européia, um denso memorando sobre os perigos do uso do termo “fundamentalismo” que se torna um instrumento de discriminação anti-cristã.
A expressão “cristão fundamentalista”, é claro, tem um significado preciso. Remonta à publicação nos Estados Unidos, entre 1910 e 1915, do livreto The Fundamentals, uma crítica militante da teologia protestante liberal, do método histórico-crítico na interpretação da bíblia e do evolucionismo biológico. Um fundamentalista é um protestante – de costume, entre outras coisas, muito anti-católico — que insiste em uma interpretação literal e tradicional da bíblia, recusando qualquer abordagem hermenêutica que leve em conta as ciências humanas modernas, e desta interpretação deduz princípios teológicos e morais ultra-conservadores.
Anders Behring Breivik não é um fundamentalista. Podemos saber muitas coisas de suas idéias através de seu perfil do Facebook — excluído, mas não antes de alguém tê-lo salvo e colocado online –, de mais de sessenta páginas de intervenções no site anti-islâmico norueguês document.no, também disponível em inglês ,e, sobretudo, de seu livro de 1500 páginas 2083 – Uma declaração de independência européia, assinado por “Andrew Berwick”, enviado a uma série de amigos e jornais em 22 de julho, a poucas horas do massacre, e divulgado na internet em 23 de julho por Kevin Slaughter, um ministro ordenado na Igreja de Satanás, fundada por Anton Szandor LaVey (1930-1997) na Califórnia, que tem hoje no mundo o maior número de seguidores na Escandinávia.
Já de sua página no Facebook surge como um interesse principal de Breivik a Maçonaria. Quem visitou o perfil de Breivik no Facebook era surpreendido por uma fotografia [acima, à direita] que o apresentava, com um avental maçônico, como um membro de uma loja de São João, que é uma das lojas que administram os três primeiros graus da Ordem Norueguesa dos Maçons, a Maçonaria regular na Noruega. Breivik faz parte da Søilene, uma das lojas de São João desta ordem em Oslo, o que, evidentemente, não tem, em si, nada a ver com o atentado. Estas lojas praticam o chamado rito sueco, que requer dos membros a fé cristã. Mas nenhum fundamentalista protestante espalha suas fotografias em trajes maçônicos: o fundamentalismo, pelo contrário, é fortemente hostil à Maçonaria. Nem se trata de um interesse no passado: a fotografia foi publicada em 2011 e já em 2009 em document.no Breivik propôs uma coleta de fundos “para a minha loja”.
Acrescentamos que mesmo a paixão Breivik pelo RPG online World of Warcraft e por uma série de televisão sobre vampiros um tanto grosseira, Blood Ties, bem como a amizade declarada com o gestor do principal site pornográfico norueguês, “não obstante a sua moral em frangalhos” — para não mencionar o fato de que um dos destinatários do seu memorial é um satanista — são todos traços que seriam absurdos para um fundamentalista cristão. Os tons recordam, se alguma coisa, Pim Fortuyn (1948-2002), o político homossexual holandês fundador de um movimento populista anti-islâmico. Se uma parte do livro aprecia a família tradicional, noutra Breivik diz considerar o aborto aceitável — embora em um número limitado de casos — e revela também ter “reservado dois mil euros que pretendo gastar com uma escolta de alta qualidade, um verdadeiro modelo, uma semana antes da execução de minha missão [de terrorismo]”.
Os textos – que revelam grandes, embora desordenadas, leituras – não parecem os de um simples louco, mesmo que haja traços de megalomania e contradições evidentes. A principal preocupação de Breivik não é a religião, mas o combate ao Islã que ameaça, segundo ele, devastar a Europa — ainda mais um país pequeno como a Noruega — com a imigração. Estas idéias não são, naturalmente, muito originais — e alguns dos autores citados por Breivik, dos quais propõe no livro 2083 uma espécie de longa antologia, são absolutamente respeitáveis — mas a teoria é declinada com tons que às vezes se tornam racistas e paranóicos.
O objetivo primeiro de Breivik é parar o Islã — daí a sua aversão pelo governo norueguês, tido como favorável a uma imigração muçulmana indiscriminada – e para isso procura aliados em qualquer lugar. Ele relatou que tinha escolhido voluntariamente ser batizado e crismado na Igreja Luterana norueguesa há 15 anos — rica e agnóstica, sua família o deixou livre para escolher – mas estava convencido de que a comunidade protestante estava quase morta e tinha sucumbido à ideologia multi-culturalista e filo-islâmica. Em um primeiro momento, escreve, os protestantes deveriam se unir à Igreja Católica. Mas mesmo a Igreja Católica já se vendeu ao Islã quando o Papa atual decidiu continuar o diálogo inter-religioso com os muçulmanos. Breivik ameaça Bento XVI, escrevendo que ele “abandonou o cristianismo e os cristãos europeus e deve ser considerado um Papa covarde, incompetente, corrupto e ilegítimo”. Uma vez eliminados os protestantes e o Papa, poderá ser organizado um “Grande Congresso Cristão Europeu”, do qual nascerá uma “Igreja Européia” completamente nova, identitária e anti-islâmica.
Se Breivik tem um inimigo, o Islã, também tem um amigo — imaginário, porque não parece ter havido grandes contatos diretos –: o mundo judaico, que considera o mais seguro baluarte anti-muçulmano. O terrorista mostra um verdadeiro culto ao Estado de Israel e suas forças militares, o que corresponde a um profunda aversão aos nazistas. “Se há uma figura que odeio — escreve ele — é Adolf Hitler [1889-1945: e sonha viajar no tempo para ir ao passado e matá-lo. É verdade que se inscreveu em um fórum neo-nazista na internet, mas o fez para tentar convencê-los que, se algumas idéias do führer sobre a primazia étnica dos ocidentais eram justas, o erro gritante foi o de não compreender que os ocidentais mais puros e nobres são os judeus, e que se quisesse exterminar alguém, o nazismo deveria, em vez, ir prender os muçulmanos no Oriente Médio.
Uma referência freqüente, no entanto, é feita à inglesa English Defence League – com a qual parece ter tido contatos diretos – um movimento anti-islâmico “de rua” que é regularmente acusado de ser racista, e que na mesma medida contesta essa acusação e critica o neo-nazismo. Breivik escreve que o multiculturalismo é uma forma de racismo e que “não se pode combater o racismo com racismo”. O nazismo, o comunismo e o islamismo são para Breivik três faces da mesma doutrina anti-ocidental, e todas as três deveriam ser proibidas. Mas a ênfase está sempre na luta contra o Islã. Qualquer inimigo dos muçulmanos, atual ou potencial, torna-se um possível aliado: assim os ateus militantes, bastante difundidos na Noruega, que Breivik convida a combater o Islã e não só o cristianismo; assim os homossexuais, a quem observa que, em um mundo dominado por muçulmanos, serão perseguidos.
Não surpreende nem mesmo o contato com a Igreja de Satanás, que prega uma forma de satanismo “racionalista” que louva a supremacia dos fortes sobre os fracos e as virtudes do capitalismo selvagem segundo a teoria da escritora norte-americana Ayn Rand (1905-1982), citada muitas vezes pelo terrorista, e que na Escandinávia se preocupa voluntariamente com os imigrantes. Mesmo os ciganos, de acordo com Breivik, seriam escravizados na Índia e reduzidos à sua condição atual de miséria não pela população hindu -- como ensina a historiografia majoritária -- mas pelos muçulmanos. Portanto -- outra característica que o distingue e muito da extrema direita européia --, Breiviki se mostra de certa forma favorável aos ciganos, incita-os a combater o Islã e até mesmo lhes promete um Estado livre e independente em sua nova Europa.
Um tom “religioso” pode ser encontrado se muito em sua defesa fervorosa dos judeus e do Estado de Israel. Este é um tema que também surge em alguns grupos protestantes fundamentalistas -- com base na idéia de que Israel é um Estado desejado por Deus em vista do fim do mundo --, mas os acentos de Breivik são diferentes. Embora não existam referências diretas, recordam irresistivelmente a ideologia anglo-israelita, nascida no século XIX na Grã-Bretanha e muito difundida na Escandinávia, especialmente nos círculos maçônicos, segundo a qual os habitantes do norte da Europa são também eles “hebreus”, descendentes da tribo perdida de Israel: o nome “danesi” [“dinamarquês”], por exemplo, indicaria a tribo de Dan. O movimento anglo-israelita se dividiu no século XX em duas seções. A majoritária, às vezes violenta e responsável por atentados nos Estados Unidos, sustenta que os europeus do norte são hoje os únicos “hebreus” autênticos. Os que se dizem hebreus, em Israel e em outros lugares, não os são etnicamente, já que seriam em maioria cazares, membros de uma tribo centro-asiática convertida ao judaísmo nos séculos VIII e IX. Daí uma aversão do “movimento da identidade” de origem anglo-israelita a Israel e seus laços com grupos anti-semitas e neo-nazistas.
Mas — se esta vertente do anglo-israelismo predomina nos Estados Unidos — no Norte da Europa ainda está presente uma vertente mais antiga, para a qual os judeus tal como os conhecemos hoje são verdadeiros herdeiros da tribo de Judá, que esperam para se reunir com seus irmãos anglo-saxões e escandinavos da tribo perdida. Quem mantém esta visão considera, então, os norte-europeus como irmãos dos judeus e, longe de ser anti-semita, defende de forma ardente o judaísmo e o Estado de Israel.
De acordo com o seu livro, o terrorista fundou em 2002, em Londres, uma ordem neo-templária que se une a muitas já existentes, os Pobres Soldados de Cristo e do Templo de Salomão (PSCTS), inspirado não só nos templários católicos medievais, mas especialmente nos graus Templários da Maçonaria — uma organização elogiada por Breivik por seu “papel essencial na sociedade”, embora a considerando incapaz de passar à necessária ação militar –, aberta a “cristãos, cristãos agnósticos e cristãos ateus”, ou seja, a todos que reconhecem a importância das raízes culturais cristãs, “mas também das raízes judaicas e iluministas”, para não citar as “nórdicas e pagãs”, para se opor aos verdadeiros inimigos que são o Islã e a imigração.
Entre essas referências ecléticas, o cristianismo não é dominante. Ele cita muitos autores, mas o seu pai espiritual é o anônimo blogueiro norueguês anti-islâmico “Fjordman”, que em 2005 tinha um milhão de leitores, mas que fechou seu blog sem nunca ter sido identificado. Breivik republica um ensaio dele, segundo o qual, depois da Idade Média, o Cristianismo — cujos únicos aspectos positivos eram de origem pagã – se tornou para a Europa “uma ameaça pior do que o marxismo”.
Os “justiceiros templários” de Breivik deveriam operar em três fases de “guerra civil européia”. Na primeira (1999-2030), deveriam despertar a consciência adormecida dos europeus mediante “ataques das células clandestinas”, desencadeando a “ação de grupos que utilizam o terror”: grupos pequenos, inclusive de uma ou duas pessoas. Na segunda (2030-2070), deve-se passar à insurreição armada e aos golpes de Estado. Na terceira (2070-2083), à verdadeira guerra contra os imigrantes muçulmanos. Breivik é consciente de que os ataques da primeira fase transformarão os conspiradores em terroristas odiados por todos, mas esta é a forma do “martírio templário” que ele busca.
Os objetivos dos ataques iniciais são os partidos políticos: o Partido Trabalhista Norueguês, em primeiro lugar, mas também aponta contra quatro partidos italianos (PDL, PD, IDV, UDC) que boicotariam de diferentes modos a guerra contra o Islã e a imigração. Na Itália, haveria 60 mil “traidores” a atingir, inclusive através de ataques a refinarias para danificar a estrutura energética italiana. Dezesseis refinarias italianas, de Trecate (Novara) a Milazzo, são listadas como objetivos estratégicos. Até ao Papa Bento XVI são dirigidas frases ameaçadoras. Ainda segundo o livro 2083, o número de simpatizantes potenciais italianos seria também de 60 mil: mas estes não se encontrariam nem na Liga nem na La Destra, que Breiviki examinou considerando suas críticas anti-imigrações muito tímidas e, portanto, no final, “contraproducentes”. Como sou um de seus Representantes, preocupa-me também a reprodução de um artigo que indica a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) como uma organização internacional filo-islâmica e perigosa.
A questão talvez mais importante é se Breivik está escrevendo um romance no estilo do sueco Stieg Larsson (1954-2004) ou descrevendo uma realidade quando diz que a sua ordem de justiceiros templários conta com membros em vários países europeus e está em contato com aqueles que o mundo chama de “criminosos de guerra” sérvios seguidores de Radovan Karadzic, que para ele, pelo contrário, são heróis que procuraram libertar os Balcãs do Islã. Outras particularidades autobiógrafas do livro que pareciam improváveis — a presença em sua família de diplomatas, a freqüência desde jovem em escolas de elite — foram confirmadas pela polícia norueguesa. A própria polícia deverá determinar se o nascimento da ordem neo-templária, os contatos com os criminosos de guerra sérvios e uma viagem para a Libéria para ser treinado por um deles, “um dos maiores heróis europeus”, antes de fundar a ordem com oito companheiros em Londres em 2002, são fragmentos da imaginação de Breivik ou episódios realmente ocorridos. O que é certo é que um terço de seu livro — um verdadeiro e próprio manual terrorista, acompanhado por um diário sobre a preparação do atentado — revela o conhecimento detalhado em matéria de armas, explosivos, da nova técnica terrorista chamada “open source warfare”, que pode ser colocada em prática até por grupos muito pequenos, e de vestimentas à prova de balas — inclusive meias, detalhe muitas vezes esquecido e ao qual Breivik dedica várias páginas — difíceis de obter, mesmo a Internet fazendo maravilhas, por alguém que nem mesmo fez o serviço militar.
Breivik escreve sempre em tom de paranóia. Mas — se quisermos, como se diz, encontrar um método em sua loucura – devemos procurar o fio condutor principal de um populismo anti-islâmico que até agora raramente tinha conhecido formas violentas, e um secundário em uma solidariedade quase mística entre identidade nórdica e hebraica-israelita, que tem as suas raízes em antigas teorias esotéricas e maçônicas das quais Breivik é um amante. A única coisa certa é que o cristianismo – “fundamentalista” ou não – tem pouco a ver, se não como um entre os muitos improváveis aliados que o terrorista imaginava recrutar para a sua batalha violenta contra a imigração islâmica.
Por Massimo Introvigne
Sociólogo da religião, representante da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) para a luta contra o racismo e as discriminações contra os cristãos.
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